Carlos Ayres Britto
Com Nelson Rodrigues aprendi a valorizar as coisas óbvias. Uma delas: há sempre lições a colher em todo tipo de experiência humana. Das boas às ruins. Por exemplo, na presente quadra nacional de tanto acirramento de ânimos (pra não dizer de faca nos dentes), chama a atenção um fato positivo, qual seja, o mais frequente gozo do direito de reunião para imprimir a ele um sentido eminentemente político. Altruístico. O sentido do mais aberto posicionamento quanto à performance atual e futura dos membros dos Poderes da União. Especialmente a performance da presidente Dilma Rousseff, por caber a ela a tríplice chefia de administração, de governo e de Estado. Assim como pelo fato de que a chamada Operação Lava Jato gravita na órbita de uma sociedade de economia mista que é de índole igualmente federal.
Pois bem, o que sucede com o direito de reunião assim exercido como instrumento de avaliação coletiva do desempenho dos Poderes e até de reivindicada influência naquilo que eles devem fazer em prol de toda a pólis? Simples! Esse direito de reunião incorpora um tipo de liberdade de expressão que passa a concretizar em grau maior o princípio da “cidadania”. Ela, cidadania, versada pela Constituição como um dos “princípios fundamentais” da República Federativa do Brasil (inciso II do artigo 1.º). Ele, direito de reunião, igualmente adjetivado de fundamental pela mesma Constituição (inciso XVI do artigo 5.º, embutido no rol dos “direitos e garantias fundamentais”, justamente).
Claro que estou a falar de cidadania como a própria Constituição fala: qualidade do cidadão. Dando-se que cidadão é o habitante da cidade. Da cidade-Estado ou simplesmente pólis, como se dizia na Grécia antiga. Aquele habitante orgânico ou militante, na acepção de que identificado com tudo o que é de todos. Envolvido com o dia a dia da coletividade de que faz parte. Possuidor de espírito público, então. A traduzir que a cidadania-de-rua aqui trabalhada termina por se revelar como instrumento de aferição do grau de legitimidade de quem se eleve à dimensão de membro do poder. No caso brasileiro atual, reitero, muito mais do membro do poder que atende pelo nome de presidente da República. Explico.
A legitimidade é atributo do que é legítimo, óbvio. Legítimo ou hígido ou sadio, juridicamente falando. Se referida aos membros do Poder Legislativo e às chefias do Poder Executivo, ela se traduz, primeiramente, na eleição popular de tais membros. A eletividade popular como forma de legitimidade no plano da investidura (“todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, diz o parágrafo único do artigo 1.º da Magna Carta). Legitimidade de berço ou na origem, portanto. Que é absolutamente necessária – porquanto genuinamente democrática –, mas não suficiente.
Com efeito, a essa legitimidade no plano da investidura se segue o dever de sua prossecução no plano do exercício. Como se dá, ainda no caso do presidente da República do Brasil (e de todo e qualquer administrador público brasileiro), com o dever da observância dos “princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (cabeça do artigo 37 da Constituição). Um tipo de legitimidade sem trégua ou enquanto durar o mandato popular. Por todo o tempo, consequentemente. Mas não é só. Ainda recai sobre a mesma autoridade pública o dever de não incidência em determinadas situações de grave comprometimento de sua tão originária quanto democrática legitimidade. Situações que, no limite, podem implicar a perda em sentido radical. Refiro-me a normas constitucionais que, se afrontadas, podem colocar tal agente político na vexatória condição de desinvestidura forçada. São as normas proibitivas de infração eleitoral e penal comum, improbidade administrativa e crime de responsabilidade, consubstanciadas no § 10 do artigo 14, incisos III e V do artigo 15, § 4.º do artigo 37, mais os artigos 85 e 86, todos da Constituição de 1988.
Lógico também que esse risco maior de perda radical de legitimidade é de ser identificado e aferido pela escorreita abertura de um específico processo de culpa no cartório. Primeiro, para saber se a conduta do presidente da República se encaixa mesmo no “tipo” ou molde normativo que a tenha como infração de gravidade suficiente para tal severo castigo (o castigo da desinvestidura forçada). Depois, caso esse juízo de subsunção ou enquadramento se faça em bases técnicas, para assegurar ao agente assim formalmente sindicado o pleno desfrute dos direitos e garantias constitucionais que, por essa plenitude mesma, se dá no âmbito do chamado devido processo legal substantivo. Sem o que a acusação de perda de legitimidade do agente se transmuta em perda de legitimidade do enquadramento e do processo em si.
Retorno ao mote da cidadania. Da cidadania que fala pela voz das ruas, ora para atestar a legitimidade de um governo, ora para colocá-la em xeque. Sem se destinar, contudo, a substituir a voz das urnas. Tampouco a voz da toga, ou a voz dos que “parlam” para fazer as leis e eventualmente decidir da sorte do presidente da República até mesmo em processo de impeachment. Não é esse o seu préstimo jurídico. Sua especial serventia reside na encarnação do luminoso juízo de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (frase que uns atribuem a Thomas Jefferson e outros a Patrick Henry). Vigilância crítica e por isso mesmo desalienada, altiva, emancipatória. Também por isso mesmo, cada vez mais eficiente mecanismo de controle dos membros do poder para estimulá-los a fazer dos seus cargos um permanente exercício de fidelidade às suas instituições. Tanto quanto estas a se manterem fiéis às respectivas finalidades.
Fonte: Jornal O Estado de S. Paulo