Fintechs: plataformas empoderadoras dos financeiramente excluídos

Saul Tourinho Leal*

Certa feita, indagado sobre a situação do seu país mergulhado na concentração de poder financeiro nas mãos de poucos, o juiz da Suprema Corte, Louis Brandeis, profetizou: “Os Estados Unidos podem ter ou democracia ou concentração de riqueza nas mãos de poucos, mas ter os dois é impossível”.

O tempo deu razão a Brandeis. Da combinação dos nomes “financeira” e “tecnologia” surgiu o termo fintech, referindo-se às startups que surgem incrementando o acesso de consumidores às vezes excluídos do sistema financeiro tradicional.

Para Luiz Humberto Cavalcante Veiga e Valter Vitelli, a sua marca “é o desenvolvimento e utilização de inovações tecnológicas com a finalidade de superar e substituir, com maior eficiência e excelência, os bancos e demais agentes financeiros na prestação dos serviços, reduzindo custos e burocracia e garantindo aos usuários maior controle sobre as operações realizadas”. Segundo os autores, “serviços que antigamente eram monopólio de determinadas instituições agora são fornecidos por vários autores situados fora do setor tradicional”[1].

Na verdade, o mundo não quer menos sistema financeiro. Quer mais. Mais atores envolvidos nessa árdua missão de promover uma verdadeira inclusão financeira que liberte os excluídos. Para Luigi Zingales, da escola de negócios da Universidade de Chicago, “As finanças são um ingrediente essencial para injetar concorrência num sistema econômico. O acesso generalizado a elas é crucial para atrair novos empreendedores ao sistema e dar a eles a chance de prosperar e crescer. As finanças são também um grande equalizador: quando o sistema financeiro funciona como deve, as ideias são mais importantes do que o dinheiro, o que significa que pessoas talentosas podem concorrer de igual para igual com qualquer um, independentemente da riqueza individual. Sem esse acesso aos fundos, os talentosos não podem triunfar sozinhos, e muitas vezes acabam trabalhando para os mais abastados, simplesmente ajudando os ricos a enriquecer ainda mais[2].”

Há, nesse particular, exemplos virtuosos. No Quênia e em parte da Tanzânia, os massais, grupo étnico africano de seminômades com suas mantas vermelhas e adornos exuberantes, desfrutam de autonomia material para implementar seus projetos de vida. O “milagre” vem do serviço M-Pesa, lançado em 2007. O M significa móvel (mobile) e pesa significa dinheiro na língua Swahili.

Vodafone, Safaricom e Vodacom, os maiores operadores de telefones móveis no Quênia e na Tanzânia, permitem, com o M-Pesa, que os usuários depositem dinheiro em uma conta armazenada em seus celulares, enviem balanços usando mensagens de texto SMS protegidas por PIN para outros usuários, incluindo vendedores de bens e serviços, e para resgatar depósitos em cash. Os usuários pagam uma pequena taxa para enviar e retirar valores usando o serviço.

Até 2012, 17 milhões de contas M-Pesa haviam sido registradas no Quênia. Em junho de 2016, a Vodacom tinha 7 milhões de contas na Tanzânia. Do solo árido da miséria e da pilhagem colonizadora brotou prosperidade e dignidade para aqueles a quem o sistema financeiro tradicional não conseguiu incluir[3]. Uma fintech nasceu, floresceu e empoderou um povo excluído que teimou em inovar.

Na India, Muhammad Yunus, o economista Nobel da Paz, criou o Grameen Bank, oferecendo microcrédito para milhões de famílias. Em 1976, ele constatou as dificuldades de pessoas carentes obterem empréstimos na aldeia de Jobra, numa Bangladesh empobrecida. Os bancos recusavam emprestar pequenas quantias que permitiriam às pessoas pobres comprar materiais para trabalhar. Essas pessoas não podiam oferecer qualquer garantia. Além disso, os juros eram altos. Com o Banco Grameen, Yunus emprestava sem garantias nem documentos, sendo procurado, sobretudo, por mulheres, que são 97% dos 6,6 milhões de beneficiários. A taxa de recuperação dos microempréstimos é de 98,85%[4].

São boas saídas para a inclusão financeira. Mas nem tudo é triunfo.

O historiador Niall Ferguson mostra a melancólica parte leste da cidade de Glasgow, na Escócia, “um dos lugares mais sombrios da Europa Ocidental”. Com uma expectativa de vida média masculina de 64 anos, grupos sem acesso ao crédito passam a ser presas deles, os agiotas. “Você dá o seu cartão de aposentadoria como garantia e ele dá o empréstimo. No dia em que seu beneficio chega, ele devolve o seu cartão e vai até os correios para pegar o seu dinheiro”, diz.

A lógica é perversa. Pede-se emprestado 10 libras e paga-se 12,50 no final de semana. É uma taxa de 25% por semana. “Mas se você calcular a taxa anual terá 11 milhões por cento”, comenta Ferguson, indo além: “Em Glasgow, deixar de pagar seu empréstimo é altamente desaconselhável. Lesões corporais graves não são uma consequência desconhecida por decepcionar um agiota”[5].

A agiotagem e a violência são frutos da falta de inclusão financeira. Em 4/3/2017, no Brasil, um microempresário que havia sido levado do estacionamento dele no Centro de Fortaleza, foi encontrado morto. A suspeita da polícia é de que o caso esteja relacionado à agiotagem[6]. São inúmeras as ocorrências. A falta de acesso ao crédito não é uma queixa vazia, nem um reclame infundado. Ela mata.

Portanto, as fintechs precisam ser compreendidas à luz dos próprios comandos constitucionais. Primeiramente, as startups, cuja base está do § 2º do art. 218, que diz: “A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional”.

Depois, o direito à inovação previsto no art. 218: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”.

Por fim, o art. 192, segundo o qual o sistema financeiro nacional há de ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade.

É preciso derrubar o muro da invisibilidade daqueles que são excluídos financeiramente. Poucas omissões corrompem tanto a dignidade do semelhante como a falta de acesso ao dinheiro. Fintech é custo baixo. Custo baixo é acessibilidade. Acessibilidade é inclusão financeira. Inclusão financeira é a concretização da própria Constituição. O caminho está aberto.

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional, foi clerk da Corte Constitucional da África do Sul e integra Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.

[1] Veiga, Luiz Humberto Cavalcante; Vitelli, Valter. Seriam as fintechs apenas correspondentes bancários eletrônicos?, p. 330. In: Fernandes, Ricardo Vieira de Carvalho; Costa, Henrique Araújo; Carvalho, Angelo Gamba Prata de (Coord.) Tecnologia jurídica e direito digital: I Congresso Internacional de Direito e Tecnologia – 2017. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 323-342.
[2] Um capitalismo para o povo: reencontrando a chave da prosperidade Americana. São Paulo: BEI Comunicação, 2015, p. 41.
[3] Cf. https://www.weforum.org/agenda/2015/09/how-mobile-money-is-driving-economic-growth/
[4] Yunus, Muhammad. O banqueiro dos pobres. São Paulo: Saraiva.
[5] Ferguson, Niall. A Ascenção do Dinheiro: A história financeira do mundo. São Paulo: Saraiva.
[6] Do G1 CE, em 4/3/2017. “Corpo de empresário desaparecido é encontrado em terreno baldio no CE”. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2017/03/corpo-de-empresario-desaparecido-e-encontrado-em-terreno-baldio-no-ce.html

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