Saul Tourinho Leal e Natália Levy (acadêmica de Direito da UnB)
A vida de muita gente, o constitucionalismo contemporâneo e a compreensão atual do direito social à educação não seriam os mesmos sem essas meninas. Três garotas que, pelo desejo de prosseguirem com seus estudos, não se encantaram com o conforto do silêncio, nem flertaram com a vergonha da covardia. As circunstâncias foram intolerantes com elas, mas elas souberam seguir e sorrir, duelando e vencendo o estranhamento e a resistência. Todos devemos muito a elas.
A primeira, nascida em 1942, em Topeka, Kansas, nos Estados Unidos, Linda Brown, muito jovenzinha não compreendeu a razão de suas longas e sofridas viagens diárias para a escola, já que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa. Ela tinha a pele negra e, em seu país, a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos apenas. Seu pai levou a questão à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education.
Distante dali, sob as montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, a jovem Malala, de 15 anos de idade, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher. Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Em 2014, quando ganhou o Nobel da Paz, ela disse: “Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo”.
Esses exemplos de coragem e compromisso incondicional com a educação ganharam, no Brasil, o reforço de alguém que não luta contra a segregação racial nas escolas nem tem de enfrentar talibãs para assistir suas aulas, mas, ainda assim, confronta a segregação das ideias e os atentados vindos pelo medo da mudança.
A jovem Valentina, em 2012, impetrou um mandado de segurança contra ato da Secretaria Municipal de Educação do município de Canela, Rio Grande do Sul. Ela tinha onze anos de idade. Até o ano de 2011, estudou na Escola Municipal Santos Dumont. Insatisfeita com aspectos ligados à religião e a convicções filosóficas e políticas do ensino, solicitou o direito de ser educada pelos pais, em casa. As autoridades locais de educação negaram o pedido. Ela bateu às portas do Judiciário.
Requereu a educação domiciliar, homeschooling, forma de educação de crianças e adolescentes realizada no ambiente doméstico, em que os próprios pais, tutores, membros da família ou da comunidade fornecem aos menores a instrução formal, em oposição ao ensino escolar, fornecido por instituição de ensino pública ou privada.
Considerando a ação imprestável por “conter pedido juridicamente impossível”, o juiz decidiu em 48 horas. “Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus”, fundamentou o julgador.
Valentina apelou. O recurso foi analisado pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os desembargadores negaram a apelação. No acórdão de 19 páginas, o relator anotou: “Nessa perspectiva, não merece prosperar o apelo manejado pela impetrante Valentina uma vez que não se vislumbra prova pré-constituída das suas alegações, inexistindo direito líquido e certo a amparar o pleito de ser educada pelo sistema de educação domiciliar”. A partir daí fez uso integral do parecer do Ministério Público. Foi só.
Valentina levou o caso para a Suprema Corte, que aceitou julgar o Tema 822: “Possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição Federal” (RE 888.815, repercussão geral reconhecida em 5/6/2015). Ainda não há data para o julgamento.
O relator do caso, ministro Roberto Barroso, ao aceitar julgar a disputa, anotou: “(…) discutem-se os limites da liberdade dos pais na escolha dos meios pelos quais irão prover a educação dos filhos, segundo suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas”. Registrou ainda: “A controvérsia envolve, portanto, a definição dos contornos da relação entre Estado e família na educação das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais”.
O Estado do Rio Grande do Sul requereu ingresso como amigo da Corte. Antecipando sua posição, trouxe passagem do filósofo Fernando Savater. Um trecho se destacou: “Um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais”.
Os demais Estados, por meio da Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, subscreveram a manifestação do Rio Grande do Sul e encamparam a ideia de que “um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais” (p. 4-5). Em seguida, pediram que seja declarado inconstitucional “qualquer forma de ensino domiciliar que permita aos pais alijar seus filhos do ensino regularmente ofertado”.
Também pediram ingresso como amigo da Corte o Instituto Conservador de Brasília e a Associação Nacional de Educação Domiciliar- ANED.
A Advocacia-Geral da União se manifestou contra o pedido de Valentina.
O então procurador-Geral da República, dr. Rodrigo Janot, opinou por afastar a consideração do “ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito de cumprimento do dever de educação”. Na página 46 do parecer, registrou: “Dada a gravidade da omissão dos pais ou responsáveis, há, inclusive, tipificação penal da desobediência ao dever de prover a instrução primária do filho em idade escolar (art. 246 do Código Penal Brasileiro)”.
Alguns pais querem, excepcionalmente, cumprindo as normas gerais da educação nacional e com autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II da CF), educar suas crianças e adolescentes. O Ministério Público reage invocando o art. 246 do Código Penal, que trata do crime de abandono intelectual. Assim, amedrontam pais cuidadosos que jamais abandonaram seus filhos.
Luciane Muniz Ribeiro Barbosa defendeu, na faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a tese de doutorado “Ensino em Casa no Brasil: um desafio à escola?”1. O trabalho mostra uma realidade: Valentina não está sozinha.
Segundo a pesquisadora, a família Vilhena Coelho, de Anápolis/GO, foi a primeira que levou a questão ao Judiciário, tendo recebido parecer da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, além da manifestação do Ministério Público Federal e de julgamento do Superior Tribunal de Justiça.
Dos cinco filhos, os três primeiros (com 10, 9 e 7 anos quando o caso foi a julgamento) estudaram em casa. O pai era procurador da República em Goiás, e a mãe, bacharel em Administração e, na época, do lar.
Quando o filho mais velho estava prestes a completar o primeiro ciclo do Ensino Fundamental, a Secretaria da Educação do Estado não abonou o número de faltas sob a alegação de que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – lei 9.394/96) exige que o Ensino Fundamental seja presencial. Ponto final.
Em dezembro de 2000, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação um parecer (CEB 34/2000) negando o pedido dos pais. Judicializada a questão, o STJ manteve a proibição (MS 7407, 1ª Seção, ministro Peçanha Martins; DJ 21/3/2005).
Também há a família Nunes, de Timóteo/MG. O pai, empresário autônomo, e a mãe, do lar, decidiram, em 2006, tirar os dois filhos da escola, na época com 11 e 12 anos. O mesmo fizeram com a filha menor (ainda abaixo da idade escolar obrigatória).
No fim de 2006, a família foi denunciada por vizinhos. O Conselho Tutelar foi acionado e o Ministério Público entrou na disputa. Em dezembro de 2007 os pais foram condenados por descumprimento do parágrafo 1º do art. 1.634 do Código Civil e dos arts. 22 e 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Também ao pagamento de multa de seis salários mínimos cada um (R$ 3.060,00 cada), bem como ao restabelecimento da frequência escolar dos filhos.
Como não cumpriram a decisão, veio, em fevereiro de 2010, a condenação pelo crime de abandono intelectual (art. 246 do Código Penal). O juiz criticou os pais, acusando-os de serem intolerantes, preconceituosos e desconhecedores da Constituição. Ele qualificou a infração penal como crime permanente, cuja consumação prolongou-se do início de 2006, quando deixaram de matricular os filhos na escola, até maio de 2008, quando o filho mais novo completou 14 anos e deixou de ter idade escolar. Condenou o pai a cumprir pena de multa de 10 dias-multa, no valor de 1/10 do salário mínimo vigente (R$ 51,00). Já a mãe, ― devido às condições econômicas como “desempregada”, foi condenada a cumprir pena de multa de 10 dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente (R$ 17,00).
O juiz solicitou que os nomes dos réus fossem lançados no livro ― Rol dos Culpados; que a condenação fosse comunicada ao Tribunal Regional Eleitoral, para fins do art. 15, III da Constituição; e que a condenação fosse comunicada ao Instituto de Identificação de Estado de Defesa Social de Minas Gerais.
A mãe foi impossibilitada de votar nas eleições e ambos tiveram as contas bancárias examinadas. Foram rastreados dados do casal no Departamento de Trânsito para penhora de seus bens.
Mas e quanto às crianças? Luciane Muniz Ribeiro Barbosa lembra que nos quatro primeiros meses de 2012, os garotos haviam ganhado mais de R$ 30 mil em concursos e viagem à Califórnia após vencerem a edição brasileira do Campus Party. Entre os concursos estão o Prêmio Mário Covas, que incentiva o desenvolvimento de inovação em gestão. Também foram campeões do concurso Open Innovation Submarino 2012, promovido pelo portal Submarino para premiar os autores de ideias mais criativas e inovadoras. Mas nada disso importava.
Luciane Muniz Ribeiro Barbosa traz ainda a família Ferrara, de Serra Negra/SP, que tinhaduas meninas, filhas de um norte-americano com uma brasileira que residia nos Estados Unidos. Em 2008, o casal decidiu tirá-las da escola e educá-las em casa.
Em 2010, o Conselho Tutelar recebeu uma denúncia anônima e encaminhou o caso ao Ministério Público, que solicitou ao delegado a instauração de um inquérito. O juiz da Vara da Infância e Juventude instaurou um procedimento verificatório.
Segundo a mãe, o juiz atribuiu ao casal uma multa de três salários mínimos, que a família se recusou a pagar. Também determinou a matrícula das filhas em uma instituição de ensino, sob pena de multa diária de R$ 50,00. A mãe procurou várias escolas públicas, mas não havia vagas. Restou ao magistrado anular a multa e indicar a matrícula das filhas no início do ano seguinte. O casal voltou para os Estados Unidos.
Essas famílias são minorias. Elas têm sido hostilizadas, perseguidas e criminalizadas. Isso machuca. A educação domiciliar não é uma esquisitice. O art. 166 da Constituição de 1946 dispunha que “a educação é direito de todos e será dada ‘no lar’ e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana”. O art. 168 da Carta de 1967 dizia que “a educação é direito de todos e será dada ‘no lar’ e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana”. Após a emenda constitucional 1/69, o art. 176 passou a dispor: “A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada ‘no lar’ e na escola”.
Então, por qual motivo as nossas instituições estão causando esse mal às famílias quanto a algo que não é estranho à nossa trajetória constitucional?
“Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”, diz a primeira parte do art. 229 da Constituição de 1988. Mais claro impossível.
O homeschooling é uma iniciativa privada. O ensino é livre à iniciativa privada, desde que atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas gerais da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II). A própria Constituição aponta standards para a prática, sem que qualquer lei infraconstitucional seja necessária para essa etapa inicial de diretrizes. Os pais têm tentado, a todo custo, cumprindo as normas gerais da educação nacional, obter autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público da educação domiciliar.
Nesse sentido, o homeschooling não afasta o Estado do seu dever de prestar o serviço educacional, mas, na verdade, realiza esse dever de forma indireta, da mesma forma que se dá com as instituições de ensino particulares. O Poder Público deve, portanto, supervisionar as famílias que optarem por esta modalidade de ensino, por meio de avaliações periódicas de aprendizagens pelos próprios órgãos do sistema de educação, para aferir a qualidade do ensino domiciliar e verificar se as diretrizes e bases fixadas por ele próprio estão sendo devidamente cumpridas.
O inciso I do art. 206 da Constituição dispõe que o ensino será ministrado com base na igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. O que esse inciso quer dizer? Que todos que optarem pela escola sabem que lhes é assegurado igualdade de condições para o acesso e permanência. Os incisos II, II e VII são gerais, incluindo a parcela que, cumprindo as normas gerais da educação nacional, e tendo autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, optem pela educação domiciliar: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VII – garantia de padrão de qualidade.
O equacionamento das naturais dúvidas quanto à educação domiciliar vem da própria Constituição, que apresenta diretrizes ao ulterior disciplinamento jurídico do instituto, sem que ele seja previamente vedado, por não haver qualquer elemento que criminalize, ou hostilize, os pais que voluntária e livremente se apresentam perante as autoridades com a intenção de educar seus filhos em casa.
Por um lado, há quem defenda que o fenômeno do homeschooling absolutiza a autonomia dos pais, que, ao optarem por eles mesmos lecionarem aos filhos em casa, da forma que lhes convier, retiram do Estado a legitimidade e o dever de prestação do serviço público de educação. Essa forma de ensino seria, na verdade, uma restrição ao direito fundamental à educação das crianças e adolescentes, pois impediria que estes vivenciassem experiências de socialização, construção de valores éticos, morais e sociais, que fazem parte desse direito fundamental. Será?
Não se deve fazer pouco caso da justa preocupação quanto à socialização das crianças. Acontece que a Constituição, no art. 227, diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e ‘à convivência familiar e comunitária’, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O dispositivo fala de convivência “familiar e comunitária”, deixando claro que o ser humano continua sendo ser humano, dotado de dignidade, e merecedor de igual consideração e respeito, mesmo que a sua educação não se dê da forma tradicional. O cuidado adicional vem com a concretização do direito à convivência familiar e comunitária, que virá das muitas formas de atividades extracurriculares.
Uma interpretação abrangente do “planejamento familiar” incluiria a forma pela qual se educa os filhos. Tudo abrangido pelos domínios da vida privada, que é inviolável (art. 5o, X, da CF). Esse planejamento familiar é disciplinado pelo art. 226, § 7º da Constituição, segundo o qual, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, constitui livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
A educação familiar também seria uma forma de expressão da atividade intelectual, que há de ser livre, independentemente de censura ou licença (art. 5o, IX, da CF).
Todavia, essa liberdade parece ofender. O covarde uso do art. 246 do Código Penal sobre pais que jamais abandonaram intelectualmente seus filhos desperta anjos maus incompatíveis com o compromisso do Preâmbulo constitucional de assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. São compromissos que se repetem nos incisos I e IV do art. 3º, como objetivos fundamentais da República: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Por outro lado, os defensores do homeschooling entendem que tem o indivíduo a faculdade de se educar conforme a própria determinação, contanto que o método escolhido alcance os objetivos traçados no referido art. 205 da Constituição. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5o, II). A omissão legislativa já seria suficiente para, de forma preliminar, declarar a validade da educação domiciliar, em razão do princípio da legalidade. Além disso, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à liberdade (art. 5º, caput).
Valentina pede para ser educada pelos pais. Justifica pela sua crença religiosa e convicções filosófica e política. A Constituição exige, para pessoas cuja crença religiosa ou convicção filosófica ou política requererem a abstenção de cumprimento a obrigação legal a todos impostas, a oferta de uma prestação alternativa fixada em lei (art. 5o., VIII). É o direito à objeção de consciência, um direito fundamental.
O procurador-Geral da República, no parecer que ofertou ao caso na Suprema Corte, contudo, anotou: “pais e responsáveis legais não têm autorização para, mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da escusa constitucional de consciência e de crença (art. 5, VI, da CF). Inexiste estipulação legal de prestação alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola (art. 52, VIII, da CF)”. Uma leitura redutora de um direito fundamental.
O caso envolve tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 3º, item 3) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, art. 12, item 4). São documentos relevantes. Segundo os incisos II e IX do art. 4o. da Constituição, a República rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios: II – da prevalência dos direitos humanos; e IX – da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Segundo o art. 5º, § 2º, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República seja parte.
Também há disciplinamentos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – lei 9.394/96), no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90) e no Código Civil (Lei X/2002). Mas quaisquer que sejam eles, a interpretação conforme à Constituição apontará para a não vedação do homeschooling e esse é o caminho para a interpretação de qualquer comando infraconstitucional. É plenamente possível a manutenção de todos os dispositivos voltados à frequência escolar, desde que se entenda que se trata da regra do modelo educacional, inaplicável, todavia, à educação domiciliar.
Em regra, costuma ser o art. 205 da Constituição o dispositivo invocado para se justificar o raciocínio de que a educação das crianças e jovens está inteira ou preferencialmente entregue ao Estado. É que o “Estado” antecede a “família” na redação: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
De repente, estamos criminalizando pais preocupados com os seus filhos em razão de uma brincadeira de palavras. Pouco importa a precedência do Estado no dispositivo, haja vista haver na Constituição um sem número de comandos que apontam os pais como elemento central na vida dos filhos e vice-versa.
Para Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, “o papel do juiz é entender o propósito do Direito na sociedade e ajudá-lo a alcançar seu propósito”. Por esse raciocínio, as diretrizes diretamente constitucionais autorizativas e ao mesmo tempo inicialmente reguladoras do homeschooling no Brasil seriam: (i) pleno desenvolvimento da pessoa; (ii) seu preparo para o exercício da cidadania; (iii) e a sua qualificação para o trabalho (art. 205, da CF).
Outro dispositivo lembrado é o art. 208, § 3º, segundo o qual “compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela ‘frequência à escola’”. Zelar pela frequência à escola tanto significa a textualidade do comando como se esmerar pela assiduidade nas outras formas de ensino, como a educação domiciliar.
No caso da menina Valentina, o parecer do Ministério Público Federal concluiu que “embora não decorra da Constituição Federal direito ao ensino domiciliar, não há vedação para que se elabore disciplina própria para o homeschooling, mediante adoção, pela via legislativa, dos instrumentos e métodos adequados ao ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, desde que não entrem em conflito com as disposições constitucionais sobre a educação e a escolarização”.
Noutras palavras, condiciona o exercício de uma liberdade – direito fundamental – ao disciplinamento infraconstitucional. Mas o que diz o Poder Legislativo a respeito disso? Emile Boudens lembra que, em 1994, quando o então Deputado João Teixeira apresentou na Câmara dos Deputados o primeiro projeto que tentou regulamentar o ensino domiciliar, e ele foi rejeitado pelo relator, Carlos Lupi, a justificativa foi a de que ele não era necessário, “pois não havia nenhum tipo de impedimento na Constituição que inviabilizasse a prática do ensino domiciliar”2. Não há vedação constitucional.
O homeschooling existe em Portugal, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Inglaterra, Israel, ltália, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Suécia…, apenas para ilustrar. O parecer do PGR, com 51 páginas, dedica 15 delas à jurisprudência estrangeira a respeito do assunto (p. 27 a p. 42).
De todos os exemplos trazidos por Manoel Morais de O. Neto Alexandre (p. 7)3, o que mais me seduz é o da Finlândia, por ter partido da cidade de Turku, onde estive recentemente, a convite da Universidade Åbo Akademi. Lá, tanto quanto aqui, anônimos passaram a perseguir uma mãe que educava seus dois filhos em casa. Ela foi processada criminalmente por autoridades locais que queriam que os meninos fossem “supervisionados” pela escola. A decisão do Tribunal finlandês, em 2015, foi favorável à mãe. Um trecho da decisão diz: “São os pais que supervisionam o seu homeschool, não a escola que supervisiona os pais, exatamente como são as pessoas que supervisionam o Governo, e não o Governo que supervisiona as pessoas”.
As palavras acima dariam paz ao espírito dos pais brasileiros que educam seus filhos escondidos, receosos de denúncias de vizinhos e das acusações de “abandono intelectual” (art. 246 do Código Penal).
Linda Brown deu o pontapé inicial para dessegregar todas as escolas dos Estados Unidos. Malala mudou a concepção dos talibãs quanto à educação feminina. Considerando as ambições dessas garotas quanto ao direito à educação, o pedido de Valentina é singelo: sem se impor qualquer dano, e sem causar mal a ninguém, ela quer, por razões constitucionais, cumprindo as normas gerais da educação nacional e com autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II, da CF), ser educada em casa, pelos pais, que têm estrutura e disposição para fazê-lo, inclusive com professores para as diversas disciplinas, se propondo a realizar avaliações regularmente.
A concessão do pedido, rigorosamente recusado pelas instâncias do Judiciário até agora, abriria um novo capítulo nas formas de concretização do direito social à educação (art. 6o da CF), somando esforços na difícil tarefa de realização desse comando, além de derrubar estigmas cruéis sobre uma minoria da nossa sociedade.
Valentina é uma variante feminina de Valentim, diminutivo de valens, valentis. Quer dizer “garotinha valente”. Sua batalha não tem sido fácil. Só ela, em sua intimidade, sabe. Mas é da coragem dessas jovens que a história do direito à educação tem sido feita. Que siga valente a menina Valentina. Não só por ela. Por nós também.
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1 Tese de grande qualidade.
2 O trabalho “Homeschooling do Brasil”, de Emile Boudens, Consultor Legislativo (Estudo Jan/2001), foi de essencial consulta quanto aos aspectos legislativos. Também: Manoel Morais de O. Neto Alexandre. “Quem tem medo do homeschooling?: o fenômeno no Brasil e no mundo”. Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016. 22p., com nuances do Direito Comparado.
3 Manoel Morais de O. Neto Alexandre. “Quem tem medo do homeschooling?: o fenômeno no Brasil e no mundo”. Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016. 22p.