Maioridade penal: a marcha-à-ré proibida – Ayres Britto

Maioridade penal: a marcha-à-ré proibida

  Carlos Ayres Britto

Não me disponho a falar da maioridade do ser humano perante a vida. Isso porque a respeito da maioridade do indivíduo perante a vida não há quem responda, em bases científicas, quando ela é alcançada. O que me animo a falar é desse tipo de maioridade perante o Direito. Em especial a chamada maioridade penal. Donde a seguinte pergunta: que é maioridade para a Constituição brasileira? Resposta: maior idade, lógico! Idade de uma pessoa natural maior. E quem é pessoa natural maior? Em regra, aquela que já completou 18 anos. Mas por que 18 anos?

Bem, porque para ela, Constituição, é ao completar 18 anos que o ser humano deixa para trás a sua adolescência. É a partir desse patamar etário que o indivíduo completa o processo de aquisição de sua personalidade básica. É ainda afirmar: idade em que a pessoa natural é tida como jovem, e não mais como adolescente (o artigo nº 227 fala de “criança”, “adolescente” e “jovem”, nessa ordem). Jovem, e não mais adolescente, porquanto capaz de entendimento quanto às coisas em torno das quais se estabelecem as relações jurídicas usuais.

Convém repetir: para a Constituição, o advento dos 18 anos de idade perfaz o que ela própria designa por ciclo de “pessoa em desenvolvimento” (inciso IV do § 3º do mesmo art. 227). Ciclo que, enquanto não ultimado, gera o direito subjetivo a um tratamento jurídico diferenciado. Direito do indivíduo à proteção desse período em que ele ainda não amadureceu em quociente emocional e mental para se posicionar conscientemente diante dos desafios mais unha e carne com a vida social.

Tal divisor jurídico de águas podia ser o de 17 anos, ou 16, ou 15, ou 14…, mas não foi essa a opção da Lei Maior. A opção foi pelos 18 anos, como exigência do princípio da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º). O princípio como razão de ser da proteção especial em que se traduz o direito à formação da própria personalidade. Uma coisa a puxar a outra.

Há exceções, contudo. Exceções tanto para além quanto para aquém dos 18 anos. Dando-se que as exceções para baixo se prestam para conferir direitos. Não para impor obrigações. Por amostragem, há redução da idade de 18 para 16 anos quanto ao direito a trabalho assalariado. Diga-se o mesmo quanto ao direito de votar, que se adquire a partir dos 16 anos. Já alusivamente ao reclamo de idade superior à baliza dos 18 anos, lembro que apenas aos 21 é que o cidadão pode se candidatar a cargo de Deputado, Prefeito, Vice-Prefeito e Juiz de Paz. Para outras investiduras eletivas, a Constituição exige idade até mais elevada, como se dá com os cargos de Governador e Vice-Governador (30 anos), além de Presidente e Vice-Presidente da República e Senador (35).

Nova pergunta: que dispositivos constitucionais fazem dos 18 anos de idade o marco da obtenção da personalidade individual pós-adolescência? Ei-los: o inciso XXXIII do art. 7º, que proíbe “trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito” anos; o inciso I do § 1º do art. 14, que somente categoriza como “obrigatórios” “O alistamento eleitoral e o voto” para “os maiores de dezoito anos”; o inciso I do art. 208, que fala das pessoas situadas na faixa dos “4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade” como destinatárias da “educação básica obrigatória e gratuita”; o art. 228, que torna “penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

Avanço neste passar em revista os enunciados da Constituição para ajuizar o que também me parece óbvio: todas as vezes que a Lei das Leis fez uso dos substantivos “crime” e/ou “pena”, já pré-excluiu os menores de 18 anos. Já o fez de olho no seu art. 228, que fixa a responsabilidade penal a partir do paradigma dos 18 anos de idade. Seu art. 5º a se conectar, em razão da matéria, a esse emblemático art. 228. A significar o reconhecimento de que, enquanto não completar suas 18 primaveras, o indivíduo tem o direito subjetivo de ser tratado por modo especialmente favorecido, porquanto pessoa ainda a caminho da formação da sua personalidade. Que, tecnicamente, corresponde ao direito de não incidir em crime nem sofrer pena. Não assim quanto ao cometimento de “ato infracional” (inciso IV do § 3º do citado art. 227), que, todavia, não se confunde com delito ou crime. Ato infracional a acarretar, no limite, “medida preventiva de liberdade”, que também não se confunde com pena (inciso V do mesmo § 3º). Logo, não-cometimento de crime e não-sujeição a pena que operam como “direito a proteção especial”, ainda de acordo com o § 3º do art. 27.

O andar da carruagem suscita novas perguntas: as referências a crime e pena em capítulo constitucional nuclearmente a serviço do princípio da dignidade da pessoa humana (capítulo II do Título II) mantém necessário vínculo operacional com o art. 228 da Constituição? Artigo em que se garante aos menores de 18 anos a não-incidência em crime e por consequência a não-submissão a pena? O direito a proteção especial, por ser da espécie fundamental, é exigente da aplicabilidade do princípio da unidade material da Constituição? Tal como se dá entre o princípio da anterioridade da lei que venha a exigir ou elevar tributo (inciso I do art. 150) e o direito individual à propriedade (inciso XXII do art. 5º e II do art. 170)? Ou entre a plenitude da liberdade de imprensa (art. 220) e os bens de personalidade em que se traduzem o pensamento, a informação e a expressão (incisos IV, IX e XIV do art. 5º)? Há um enlace operativo tal entre esses dispositivos que passa a exigir do intérprete a formulação de conceitos geminados?

Respondo afirmativamente, para chegar à conclusão de que reduzir a baliza penal dos 18 anos é medida “tendente a abolir” cláusula pétrea (§ 4º e seu inciso IV, ambos do art. 60). Afinal, que impede emenda constitucional de começar pelo marco dos 16 anos e depois substituí-lo pelo de 15, 14, 13, 10 anos, e assim prosseguir nessa marcha-à-ré sem horizonte à vista?

* Versão reduzida do texto publicada no Estadão dia 26.04.2015

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