Parcelamentos tributários são questionados no STF

Saul Tourinho Leal

Cristiane Guedes[1]

Foi ajuizada, no Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6027, de relatoria da min. Carmen Lúcia, que questiona os artigos 1º a 11 da Lei 13.496/2017 e os artigos 1º a 13 e artigo 39 da Lei 13.606/2018. A primeira lei instituiu o Programa Especial de Regularização Tributária (PERT), enquanto a segunda, o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR).

Os comandos constitucionais violados seriam os que veiculam a capacidade contributiva e a livre concorrência, elencados, respectivamente, nos artigos 145, §1º e 170, IV, da Constituição. Além disso, alega a requerente existência de contradição frente ao novo regime fiscal, estabelecido pela Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016.

Tentando demonstrar a ofensa ao princípio da capacidade contributiva – o qual se relaciona com o princípio da solidariedade e, por consequência, com a justiça fiscal –, a requerente aponta que grande parte dos beneficiados é composta de empresas, as quais supostamente não possuem dificuldades em suas finanças.

Alega, ainda, que os benefícios são concedidos diante da inexistência de requisitos e acabam por criar uma desigualdade entre contribuintes com idêntica capacidade contributiva, sem que haja qualquer justificativa a níveis de desenvolvimento nacional para ocasionar o tratamento desigual.

Quanto à afronta à livre concorrência, afirma que os parcelamentos especiais concedidos se apresentam como instrumento de protelação ao pagamento, acarretando, por vezes, o não pagamento do tributo. A concessão reiterada de tais programas se tornaria uma forma de incentivo inverso, uma vez que estimula o não pagamento das dívidas. Salienta que as empresas se utilizam dessa iniciativa como método estratégico para competir de forma desigual com quem efetivamente paga tais impostos, reduzindo os preços dos produtos a serem vendidos.

Por fim, aponta que a elaboração das leis instituidoras do PERT e PRR não seguem a delimitação estabelecida pelo art. 113 da EC nº 95/2016, presente no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. Segundo esse artigo, “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.”.

Há controvérsias.

Parcelamentos tributários, em um país cuja carga tributária engole quase 35% de tudo o que se produz[2], nada mais é do que uma forma de “ajudar os que ficaram para trás”, na expressão de Angus Deaton, Prêmio Nobel de Economia[3]. O peso da carga tributária no Brasil, em razão da sua forte regressividade, termina sendo mais penosamente sentido pelos segmentos mais frágeis da sociedade.

Desde o Egito antigo, “a política de perdoar tributos durante tempos difíceis era uma prática comum”. Textos oficiais autorizavam “os escribas a praticarem a remissão de dois terços dos impostos para os fazendeiros pobres que se encontrassem endividados” [4], lembra Celso de Barros Correia Neto.

Os parcelamentos têm a sua razão de ser. Para Phelippe Toledo Pires de Oliveira e Diogo de Andrade Figueiredo, “os entes públicos concedem parcelamentos para permitir que aqueles contribuintes que se encontrem em situação financeira difícil possam continuar o exercício de suas atividades empresariais, evitando que encerrem suas atividades em razão de suas dívidas (tributárias)”. Trata-se “de uma oportunidade concedida pelos entes públicos de permitir a continuidade das atividades empresariais de seus contribuintes” [5].

Vale ressaltar, ainda, que de perdão não se trata. São dívidas tributárias de obrigações devidamente declaradas, portanto, assumidas pelas empresas, mas não honradas pelas dificuldades financeiras decorrentes, principalmente, da forte crise.

O parcelamento de débitos tributários, em si, não é excomungado pela Constituição nem pelo seu guardião mais qualificado, o Supremo Tribunal Federal[6]. Segundo esse, “toda e qualquer exigência de regularidade fiscal (lato sensu) sempre terá como efeito indireto a indução ao pagamento, mesmo de forma parcelada, de tributos”[7].

Quanto à ideia de se tratar de renúncia de receitas, Celso de Barros Correia Neto recorda Stanley S. Surrey, professor em Harvard, que trouxe, nas décadas de 1960 e 1970, a expressão tax expenditure para designar os efeitos econômicos no orçamento público de certas previsões tributárias especiais[8]. O objetivo era “evidenciar a relação entre a legislação tributária, especialmente tais disposições excepcionais, e a gestão orçamentária, tendo em vista os custos financeiro-orçamentários das escolhas tributárias do governo” [9], esclarece.

O jurista também recorda que, em língua portuguesa, as traduções mais exatas da expressão inglesa tax expenditure seriam “gasto tributário” ou “despesa fiscal”, como são empregadas em Portugal. A tradição jurídica brasileira, no entanto, preferiu “renúncia de receita [tributária]” e “renúncia fiscal”, termos mais usuais e adotados expressamente pelo texto constitucional nos arts. 70 e 153, § 4º, III, respectivamente.

Não existe um procedimento universalmente aceito para a determinação do que seja gasto tributário, renúncia de receita ou benefício fiscal. Os parcelamentos questionados têm caráter geral, amplo, impessoal e não condicionado. Estão previstos em leis cujo fundamento de validade é a própria Constituição.

De todo modo, o debate está lançado ao STF e, a partir dele, aspectos relevantes da justiça fiscal poderão ser explorados. O ponto de partida e de chegada dessa discussão é, sem dúvida, a Constituição, que está aí para ser percorrida.

[1] São, respectivamente, doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP e acadêmica de direito do IDP. Integram Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, como advogado e estagiária, respectivamente.
[2] Segundos dados da OCDE de 2016: 33,4%.
[3] DEATON, Angus. A grande saída: saúde, riqueza e as origens da desigualdade. Trad. Marcelo Levy. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017. Cf., especialmente, o capítulo sete da obra: “Como ajudar os que ficaram para trás”.
[4] NETO, Celso de Barros Correia. O Avesso do Tributo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 125.
[5] OLIVEIRA, Phelippe Toledo Pires de. ; FIGUEIREDO, Diogo de Andrade. Refletindo sobre o parcelamento de débitos tributários nos 50 anos de CTN, p. 796. In Estudos de Direito Tributário e Homenagem ao Prof. Gerd Willi Rothmann. São Paulo: Quartier Latin, 2016. Schoueri, Luís Eduardo. Bianco, João Francisco (coords). Castro, Leonardo Freitas de Moraes e; Duarte Filho, Paulo César Teixeira (orgs.).
[6] O parcelamento de débitos tributários configura causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Encontra-se previsto no art. 151, VI, do CTN, tendo sido regulamentado pelo art. 155-A do mesmo diploma legal. Esses dispositivos foram introduzidos pela Lei Complementar nº 104/2001.
[7] Para o Min. Toffoli, “a função arrecadatória, que se apresentava como objetivo primordial no passado, revela-se, nos dias de hoje, apenas uma consequência natural da tributação, que passa a ser efetivamente utilizada para se alcançarem outros objetivos constitucionalmente previstos”. RE 627.543, Min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 29/10/2014. Cf. p. 12 do acórdão.
[8] SURREY, Stanley S. ; HELLMUTH, William F. The Tax Expenditure Budget – Response to Professor Bittker. National Tax Journal, vol. 22, n. 4, dec. 1969, pp. 528-537. Apud Celso Correia Neto. O Avesso do Tributo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 143.
[9] O Avesso do Tributo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 144.

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