Poder econômico da excelência à Insolência
Carlos Ayres Britto
A Constituição dá boas-vindas ao poder econômico, é certo, mas também quer vê-lo pelas costas. Aqui, pelo parágrafo 9.º do artigo 14. Ali, pelo parágrafo único do artigo 170. Explico as duas contrapostas vontades normativas.
No parágrafo único do artigo 170, o que está ungido e sacramentado é o senhorio da atividade econômica pelos particulares. Eles é que são investidos no direito de organizar os fatores da produção, com o objetivo de lucro. Para tanto não precisam da autorização do poder público, salvo nos casos previstos em lei. Mas a lei apenas a dizer que atividade negocial ou produtiva exige tal consentimento. Não a lei a dizer que atividade econômica pode ou não pode ser objeto de exercício privado. Somente a Constituição é que tem essa força de pré-excluir de protagonização particular um determinado ramo de produção ou exploração mercantil. Como faz, por ilustração, com o monopólio estatal do petróleo, do gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos.
Bem, a Constituição reserva aos particulares o senhorio ou a titularidade do que ela chama de “atividade econômica” porque se rende ao fato de que os particulares é que têm vocação para esse tipo de mister. Eles é que entendem do riscado. Nasceram para isso. Têm feeling, talento, jeito, gosto, disposição, tino, enfim, para produzir bens, prestar serviços, intermediar negócios e coisas do gênero. Empreendedores, enxergam oportunidades de ganhos lícitos até na Cochinchina ou nos cafundós do judas. Corajosos, empregam seus capitais, levantam empréstimos, arregimentam sócios e entram de cabeça na realização de um sonho que bem pode conciliar do modo mais otimizado os fatores da produção em si (capital, natureza, trabalho, tecnologia…) e contribuir tanto para os cofres do Estado quanto para a sustentabilidade ambiental, a expansão das vagas de emprego compensador e o respeito aos direitos do consumidor. Além do fortalecimento do mercado interno, pois assim exige o artigo constitucional de n.º 219.
Agora vem o contraponto. A Constituição vê na “influência do poder econômico” um elemento de perturbação a quatro bens jurídicos: a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, a normalidade e a legitimidade das eleições populares (parágrafo 9.º do artigo 14, remarco). Influência que eu interpreto como participação. Interferência. Uso. Simples protagonização. Não influência como excesso, não influência como descomedimento, ou preponderância, ou abuso, pois de “abuso” o mesmo preceito falou foi quanto ao “exercício de função, cargo ou emprego na administração direta e indireta”.
Fez bem o Magno Texto? Há fortes razões para esse chega-pra-lá no poder econômico, em matéria eleitoral? Respondo que sim. O poder econômico é todo um aparato de capital. Toda uma capilarizada arquitetura empresarial de patrimônio, dinheiro, consciência de classe, prestígio social e político. Não por acaso chamado assim normativamente de “poder”, porque o típico do poder é instaurar relações verticais ou de autoridade. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” é o dito popular de sempre. Por isso a presunção constitucional absoluta de que permitir ao poder econômico participação no processo eleitoral é desequilibrar a competição em que toda eleição popular consiste. Desequilibrar em favor dos candidatos, partidos políticos e coligações partidárias empresarialmente financiados. O que também significa arrebanhar votos pela compra de consciências, ora ostensivamente, ora camufladamente, ora subliminarmente.
Não que o empresário esteja proibido de se lançar candidato em eleições populares. Não é isso. Mas é preciso entender a diferença entre participar como cidadão e participar como agente econômico em tema de eleição popular. O cidadão não deixa de ser cidadão por se tornar empresário. Prossegue com sua particular maneira de conceber e praticar a vida pública, inclusive na perspectiva da prevalência de uma ordem jurídica favorecedora da vocação e dos modos de agir de quem se profissionaliza como agente econômico. Pelo que, mesmo desse ângulo peculiarmente classista, desfruta de todo o direito de votar, de eventualmente candidatar-se a cargo eletivo e de participar proativamente de cada pleito. O que não quer a Constituição é que ele o faça enquanto empresário mesmo, porque, aí, já o fará com todo o aparato de poder que é próprio da sua empresa e até mesmo da sua classe. Da sua estrutura de dominação ou de desequilibradora influência material. Do capital enquanto polo contraposto ao do trabalho, ao do consumidor, ao do cidadão comum. Apartando-se de todos esses polos contrapostos pelo plus do seu poderio empresarial e aparato corporativo de influência quase sempre decisiva no resultado da disputa eleitoral. Entendida como influência econômica, portanto, a ação que transporte o cidadão para os domínios do capital enquanto signo de força corporativo-produtivo-patrimonial-pecuniária. Força elementarmente favorecida e por isso mesmo fortemente propensa à rendição do corpo de eleitores dessa ou daquela circunscrição.
Concluo reafirmando que a lógica perpassante do referido parágrafo 9.º do artigo 14 me parece esta: admitir o financiamento empresarial de candidatos e partidos é favorecer o próprio somatório do poder econômico e do poder político. É facilitar a formação da parceria que mais historicamente degrada a representação política, nos marcos de uma democracia que se pretenda autêntica: a temível parceria que tem redundado em voluntarismo, prepotência, fisiologismo, cooptação, fraude, cartelização, corrupção sistêmica, sub-representação. Daí que toda cautela jurídica seja pouca. Toda rédea curta se faça interpretativamente necessária, porque essa é a vontade objetiva da Constituição. Pena de se viabilizar a adoção de mecanismos que, na prática, serão o modo mais eficaz de tornar ineficaz a Constituição mesma. Pena de se transitar de uma ordem econômica de excelência para um regime de financiamento empresarial de insolência.
*Artigo publicado no jornal Estadão, dia 28 de junho de 2015.