Foi-se o tempo em que a fecundação humana se dava por uma única forma. Agora já são dois os modos de conceber o ser humano: um, natural, outro, artificial. Este último é que traz consigo a logomarca da novidade, por acontecer sem o conúbio ou relação sexual. Fora do corpo da mulher, então, por se tratar de fecundação processada em laboratório ou por efeito de processos científico-tecnológicos de procriação assistida.
Essa distinção é fundamental para um claro posicionamento sobre o tema da pesquisa científica a partir de células-tronco embrionárias. Células que são extraídas de embriões humanos para o fim de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais (que são criaturas humanas em sentido biográfico, porquanto revestidas do atributo da personalidade civil). E o fato é que tais células-tronco se acham presentes em qualquer das duas modalidades de embrião.
Cogitando-se de embriões naturalmente eclodidos, as coisas se passam, simplificadamente, por essa forma: um impulso inicialmente subjetivo – a cópula entre pessoas de sexos diferentes – é sequenciado por impulsos objetivos. Quais? Primeiramente, o do espermatozoide para penetrar no óvulo e a predisposição deste para “dar as boas-vindas” àquele, de sorte a alcançarem, juntos, o ponto de fusão que já é o desabrochar do zigoto. Zigoto, ou embrião, inicialmente constituído por uma única célula: célula-ovo ou célula-mãe, por ser a matriz de todas as 216 espécies de células do corpo humano. Dando-se em contínuo a possibilidade de ‘nidação’ dele, embrião, e o sobrevir das demais fases do processo de ‘hominização’; isto é, caminhada intra-uterina do feto (nome que passa a tomar o embrião) em direção a uma nova pessoa física ou natural. Daí o termo “nascituro”, a significar o estado de quem vai ou de quem pode nascer de u’a mulher.
Quanto ao zigoto ou embrião artificialmente produzido, aí não se tem aquele inicial e subjetivo impulso da relação sexual. Não há coito ou contato físico equivalente. Nenhum início de vida virginalmente nova acontece nem se desenvolve no interior do corpo feminino. Nem dele sai. O que sai desse corpo é um singelo óvulo. Assim como se dá com o próprio corpo masculino, pois o que se coleta do homem é um jorro de espermatozoides. Não um embrião, lógico.
Diga-se mais: esse tipo laboratorial de embrião, surgido por experimento em “Placa de Petri”, é forma de concepção que não se faz acompanhar da gravidez humana. O embrião está lá, numa placa, num tubo de ensaio, num pequeno cilindro de nitrogênio, num vidrinho congelado (“concepção in vitro”), mas não a nidação, não o útero, não o nascituro, não a gravidez. Não há gestante. Menos ainda maternidade, se entendermos por maternidade esse arrebatamento amoroso que só as mulheres-mães ou em vias de sê-lo conseguem experimentar, porque da sua anímica parceria com a natureza e o próprio útero (entidade mágica à parte) é que se vai compondo a mais sublime das obras de arte deste planeta azul: um ser humano estalando ne novo. Criatura verdadeiramente “insimilar” ou “irrepetível” em sua transbordante originalidade, seja qual for a dimensão em que se considere o tempo: presente, passado, futuro. Ninguém é igual a ninguém por toda a eternidade.
Pois bem, é somente para esse tipo de embrião in vitro que se dirige o discurso do art. 5º da Lei de Biossegurança. Unicamente ele, embrião congelado em vidrinho de laboratório, que não saiu de nenhuma mulher e em mulher alguma vai entrar. Embrião que, produto da Ciência, para a Ciência mesma pode vir a ser disponibilizado. Contanto que seja inviável para a reprodução humana. Ou que, mesmo prestante para o fim de procriação, esteja congelado há pelo menos três anos, sem que o casal doador se disponha a transportá-lo para um útero feminino. Casal que ainda detém o exclusivo poder de autorização para o encarecido uso científico-terapêutico do zigoto que se produziu a partir da coleta de seu material genético (espermatozoide e óvulo). Tudo a ser complementado da pesquisa por comitês de bioética, vedado todo tipo de comercialização de embriões. Por isso que a Lei se auto-refere como de “Biossegurança”, e não de “Bioinsegurança” (lei federal nº 11.105/05).
Agora é de se perguntar, obviamente: a vida humana começa por qualquer das duas modalidades de embrião? A resposta parece evidente: sim! Mas embrião de pessoa humana já é pessoa humana embrionária? A pessoa humana como individualidade cerebral, moral, espiritual, a se antecipar à metamorfose do embrião e do feto? Novo questionamento: a Constituição brasileira cuida do início da vida do homo sapiens, ou sobre o início da vida a Constituição “é de um silêncio de morte”? o Direito pode proteger por diferentes modos o produto dos dois tipos de concepção humana? Se o embrião eternamente in vitro empaca nos primeiros degraus do que seria o processo de ‘homonização’ sem a menor possibilidade de vir a ter as primeiras terminações nervosas que já significam o luminoso anúncio de que um cérebro humano dá sinais de formação?
Prossigo nos questionamentos: o emprenho da natureza em prol do que seria uma nova criatura, tanto quanto o investimento do casal doador e mais ainda o da mulher (investimento físico-psicológico-sentimental), tudo não é compreensivelmente maior no embrião que irrompe e evolui por modo natural, sem a mão de estranhos a forçar a objetiva penetração de um óvulo por um espermatozoide? Cuida-se de lei que autoriza a mais desalmada chacina de embriões, ou, bem ao contrário, que favorece o belo sentimento da fraternidade, em perfeita sintonia com os desígnios constitucionais de incremento da ciência e do progresso? Da autonomia científico-tecnológica do País em tema de saúde, alongamento e qualificação da vida humana? Da livre decisão dos casais quanto ao tamanho de suas famílias como expressão de criterioso planejamento e paternidade responsável?
Numa síntese, ser ou não ser usado para o fim de pesquisa científico-terapêutica, eis a questão que envolve um contingente de milhares de embriões já congelados em vidrinhos de laboratório e sem utilidade para fins reprodutivos. Tema que vai além do Direito para se tornar focado objeto das ciências médicas e biológicas, da filosofia, da ética, da antropologia e das confissões religiosas. Por isso que para uma justa resolução do impasse todos devam contribuir de alguma forma. Todos que se disponham a ver o mundo pelo inexcedível prima da consciência, esse rebento que se parteja por efeito do amoroso matrimônio entre o pensar e o sentir. Afinal, bem disse William Shakespeare, “a transformação é uma porta que se abre por dentro”.
Publicado na Revista Justiça e Cidadania
Abril de 2008.