Carlos Ayres Britto
1.A Justiça como Valor Compósito
1.1 A justiça é o valor fundante do direito e o fim para o qual se dirigem as normas jurídicas em seu conjunto.
Sucede que, para se positivar, a justiça reclama a concreção necessária de muitos outros valores jurídicos, dado que ela não tem apenas um, mas vários elementos que lhe são consubstanciais. Por isto, o direito tem de promover a atuação preliminar desses múltiplos valores em que a justiça se lastreia e sobre os quais impera, soberanamente.
A partir desta elucubração, pensamos que a justiça pode não figurar, e geralmente não figura mesmo, como destinação visível e imediata de uma norma jurídica em particular, por ser ela um valor compósito, resultante da efetivação de outros valores. O sistema normativo como um todo, este, realmente, é que apresenta o justo como sua preocupação dominante e finalidade específica.
1.2 Em palavras diferentes, o direito apresta-se em servir à causa da justiça, atuando, naturalmente, por intermédio das regras legislativas, costumeiras, judiciais e negociais em que ele, o direito, se manifesta e se historiciza. Para tanto, casa uma das regras jurídicas procura realizar aqueles valores que, em seu conjunto, conduzem a uma situação de justiça. Daí falarmos que, sendo a justiça um valor sínteses, somente a ordem jurídica em sua globalidade é que pode implementá-la no meio social.
Semelhante especulação permite novas inferências sobre o convívio de recíproca influência que o justo mantém com os demais valores jurídicos, como, a seguir, demonstramos.
1.3 Miguel Reale, observando que toda a regra de direito visa a um valor (liberdade, igualdade, segurança, propriedade, saúde, educação, intimidade, etc.), e que essa pluralidade axiológica é rigorosamente consubstancial à experiência jurídica, Miguel Reale, dizíamos, surpreendeu na justiça aquele sentido de equilíbrio e de composição de valores que a tornam condição primeira de todos eles. Condição transcendental de possibilidade dos valores jurídicos como atualização histórica, a ponto de doutrinar, o Mestre paulista, que os valores valem porque a justiça vale.
De fato, a justiça transparece, nos domínios do direito, como uma tentativa de harmonia entre os valores jurídicos necessariamente plúrimos, sendo ao mesmo tempo, a harmonia assim atingida. É que a pluralidade estimativa, que timbra o sistema jurídico, pressupõe uma composição de valores que se cruzam e vezes até se repelem. São valores em tensão, que comente se efetivam mediante um trabalho prévio de combinação e ajustamento.
Exemplificando, se o Estado postula para si mesmo a utilização da maior parcela possível de ordem – valor comunitário indispensável –, os indivíduos também reclamam para eles uma fatia não menos expressiva de liberdade, na acepção mais dilatada desse valor individual básico. Por igual, se o titular de um bem imóvel intenta retirar desse bem os frutos e as utilidades que o valor propriedade privada legitima, há de fazê-lo de modo compatível com a preservação do valor saúde, do valor sossego e do valor tranquilidade dos vizinhos, pois somente assim aquele seu intento pode ser aceito como justo.
Pois bem, a justiça é precisamente o valor que promove a materialização “possível” dos valores jurídicos em tensão. É o fator de ajustamento dos valores intercorrentes, que vai permitir a superação dos unilateralismos separatistas e a formação do consenso unificador dos interesses em jogo.
1.4 À penetrante observação do grande filósofo e jurista brasileiro, acrescentamos que, se os valores em conflito se excluem, não admitindo possibilidade prática de composição, a justiça toma o sentido de critério de julgamento e de seleção, escolhendo aquele que deve subsistir e o que deve ser sacrificado. Concretamente, é o caso típico da pretensão punitiva e segregadora do Estado, quando se tensiona com a liberdade do homicida comprovadamente doloso. Nesta contingência, o holocausto só pode recair sobre a liberdade individual, porque justo é que assim o seja.
2. A Justiça como Garantia de Realizabilidade dos demais Valores Jurídicos
2.1 De outra parte, se é possível enunciar que os valores valem porque a justiça vale, pensamos não ser menos correto afirmar que o justo também opera como garantia de concreção dos demais valores jurídicos.
Sendo a justiça a razão de ser do direito, o seu valor específico e privativo, é claro que as normas jurídicas procurarão realizar todos aqueles valores que se embebem na compreensão social do justo. Todos aqueles modelos valorativos que se posicionam como supedâneo inafastável de uma ordem social justa.
Isto equivale a dizer que todo valor cuja fruição pessoal se inebria da compreensão coletiva do justo, de forma a dela extrair sua possibilidade de concreção, todo valor assim conscientizado pressiona o legislador e o aplicador da regra jurídica para que lhe dêem passagem para o desejado mundo do direito. E o valor assim compreendido se institucionaliza, objetivando-se como fim de uma dada regra jurídica.
Disto resulta que a compreensão social do justo é muito importante, porque por ela é que podemos aferir o grau de fidelidade do direito à sua destinação histórico-cultural.
2.2 Abrindo um parênteses, cumpre-nos advertir que o vocábulo “compreensão” não está sendo empregado com rigor técnico, naquele sentido filosófico de forma do conhecimento que se obtém indiretamente, por demonstração. Aqui, tanto pode significar esse tipo de conhecimento, como aquele que se adquire sem demonstração, mediante o contato direito do sujeito cognoscente com o objeto cognoscível. Com esta significação ambivalente, a locução do tipo “entendimento societário” ou “compreensão social” tem o propósito pedagógico de afastar os inconvenientes de uma discussão lateral sobre o acerto ou não das correntes filosóficas que dissentem quanto à forma pala qual o conhecimento se torna possível.
2.3 Retomando o curso do estudo, afirmamos que o direito pode coincidir com a justiça, possibilitando-nos dizer que justo é aquilo que o direito proclama como tal, se as regras jurídicas conseguem positivar, com razoável adequação, os valores cuja existência é timbrada com o sinal do justo-coletivo. Ao revés, sempre que as normas jurídicas chancelarem modelos estimativos repudiados pelo entendimento societário do justo, é-nos lícito reconhecer que o direito deixa de ser tradução da justiça, porque com ela conflitante.
É a constatação que também se encontra no raciocínio sempre fértil de Tomaz de Aquino, quando diz que as “leis, se injustas, não constituem leis, mas corrupção das leis”.
Isto nos leva a repetir que, infelizmente, não podemos dizer que onde houver direito haverá justiça. Mas sendo o direito uma ordem de realidade “que luta pela implantação da justiça na cidade dos homens” (José Amado Nascimento), é válido asseverar que, pelo menos em termos coletivos, onde houver justiça haverá direito.
3. Fisiologia Relacional entre a Sociedade, o Direito e a Justiça
Como derradeira especulação em torno deste inesgotável tema, fixemos algumas idéias sobre o relacionamento necessário entre a sociedade, o direito e a justiça.
Se atentarmos bem para o fato de que a justiça é o fator que sustenta a vida coletiva em bases equilibradas e harmônicas, chegaremos à conclusão de que a sociedade, institucionalizando o justo como valor fundamental do sistema jurídico, canaliza seu poder decisório para uma tomada de posição da mais alta relevância: a instrumentação do direito como o complexo das condições de existência dessa mesma sociedade. Ou seja, o criador, que é a sociedade, passa a valer-se de sua criatura (o direito), para poder sobreviver e evoluir.
A tal enunciado ajusta-se bem a noção entretecida por Von Ihering, segundo a qual o direito é o complexo das condições existenciais da sociedade, asseguradas pelo poder público.
Por consequência, direito, justiça e sociedade são realidades que mantêm entre si uma rigorosa relação de dependência e complementariedade. Esta dialética de complementação e polaridade se resume no seguinte quadro explicativo:
I – A sociedade tem na justiça aquele valor que dá conteúdo e sentido à experiência humana em interferência intersubjetiva e sem o qual “já não valeria a pena que os homens vivessem sobre a terra” (Kant). Mas, para assegurar a si mesma o usufruto de tão indispensável valor, a sociedade tem de recorrer a um mecanismo de execução garantida da justiça. Esse mecanismo especial de concreção do justo no meio social é o direito (em razão dos conhecidos atributos da heteronomia, coercibilidade e bilateralidade atributiva das normas jurídicas).
II – O direito, asism instrumento pela sociedade humana, passa a ter na justiça o seu valor fundante e a embocadura em que deságua o conjunto é realizar a justiça entre os homens, criando meios para a implantação de uma ordem social que mereça o qualificativo de justa;
III – Na trama desse relacionamento plurilateral, a justiça torna-se elo de ligação entre o direito e a sociedade, porque por ela é que o direito serve a esta última. E o direito passa a funcionar como ponto de contato entre o corpo social e a justiça, porque é por meio dele que a sociedade alcança o valor do justo.
Foram estes os ângulos que nos pareceram mais apropriados à visualização da justiça, esse valor compósito que se mimetiza de acordo com a esfera de realidade em que se manifesta.
Publicado na Vox Legis – Volume 40
Janeiro de 1983