Brasil: da queda ao passo de dança – Ayres Britto

Brasil: da queda ao passe de dança

Carlos Ayres Britto*

Em momento de cristalina e intensa luminosidade interior, Fernando Sabino sentenciou que “é preciso fazer da queda um passo de dança”. Frase oracular que reproduz, em essência, o dito popular de que “é preciso fazer do limão uma limonada”. Como ainda significa a necessária postura do nunca jogar a toalha diante dessa ou daquela adversidade e, mais que isso, o que importa é tirar partido da adversidade mesma para se reciclar como pessoa. Dar a volta por cima. Passar a própria vida a limpo, na perspectiva de se tornar, não exatamente melhor de quem quer que seja, porém melhor que antes. A crise de existência individual a ser encarada, portanto, como oportunidade de fortalecimento da têmpera de quem por ela foi atingido para superá-la e ainda inibir fortemente sua recidiva. Aqui, antídoto. Ali, fortaleza de ânimo.

No fundo, cuida-se do desafio de ser adulto. Maduro. Desafio de provar que se tem amor próprio para não sair do seu estado de centralidade individual ou então voltar a ele o mais rapidamente possível. Para entender que até mesmo o fundo do poço tanto pode ser de areia movediça como de molas ejetoras, a depender de quem despenca. Donde a possibilidade de transformar em atitude a proclamação de que nenhuma crise de existência nos empurrará para o despenhadeiro de toda uma existência de crise. Nenhuma crise, então, por aguda que seja, a ouvir da nossa boca as tristíssimas e moribundas palavras do “ok, você venceu!”.

Ora, esse desafio de ser adulto em face de toda e qualquer situação de crise não é só de cada ser humano em particular. Não significa um dever de resistência e superação que apenas recai sobre os ombros de fulano, beltrano, ou sicrano, como se toda crise existencial não fosse além da individualizada condição humana. Claro que não! O desafio da elevação a um status de maturidade existencial ou fortaleza interior também se impõe a toda sociedade civil que venha a se debater nas tenazes dessa ou daquela crise assim coletivamente manifestada. Que pode ser de feição política, ou moral, ou ecológica, ou econômica, etc, quer por modo isolado, quer pelo somatório de uma a outra modalidade. Situação de crise que se abate sobre o povo todo e por efeito, percebe-se, de falhas de desempenho por parte de quem juridicamente representa essa totalidade societária: o Estado. Isso porque nenhuma sociedade civil “presenta” juridicamente a si mesma (o neologismo “presenta” é de Pontes de Miranda) para ser diretamente responsabilizada pelo seu tão bovino quanto perigoso trânsito pela beira do abismo. A centrada culpa é de quem fala e atua em nome do corpo social por inteiro e de modo permanente, sendo certo que essa fala e ininterrupta atuação ocorrem pela garganta e pelas mãos do Estado. Sem prejuízo do reconhecimento de que os déficits de representação por parte do Poder Público podem experimentar agravamento como resultado de uma baixa de guarda por parte da população nos campos estratégicos da criteriosa escolha eleitoral dos governantes e do acompanhamento crítico do respectivo desempenho. Sabido e ressabido que é sempre temerário eleger de qualquer jeito alguém e depois tratar a rédea longa quem se faz de encarnação do poder que mais sucumbe a duas espécies de tentação: a de confundir autoridade com autoritarismo e a de reproduzir o modelo colonial-patrimonialista de que poder e pudor são como água e óleo: não se misturam. Quando o certo é reconhecer que os três valores planetários mais intrinsecamente meritórios são a democracia, o meio ambiente ecologicamente equilibrado e a ética na política, justamente. Essa moralidade na política de que falou Thomas Jefferson com o definitivo juízo de que “A arte de governar consiste exclusivamente na arte de ser honesto”. No que foi secundado por D. Pedro Casaldáliga, ao enunciar que “Ética na política é vergonha na cara e amor no coração”.

Bem, se as crises de existência também se abatem sobre todo o corpo social, como está a suceder com o Brasil destes inquietantes dias, a saída é a mesma que incumbe às pessoas naturais: dar mostras de têmpera, ânimo, coragem, amor próprio, lucidez e tudo o mais que signifique maturidade. Coesão. Disposição para crescer diante do inimigo comum e assim apequená-lo. Com uma especificidade que é também atualizadamente brasileira: tal crescimento já não tem como ocorrer senão pelo chamamento do Estado à ordem. Chamamento do Estado à ordem constitucional, por evidente, pois só a Constituição governa quem governa. Governa permanentemente quem governa transitoriamente. E que tem no seu impune desrespeito a pior forma de desgoverno. Desgoverno tanto mais grave quanto autoritário e imoral, pois duas coisas são definitivas lições da História: primeira, governo sem freio é tão expressão de força bruta como água de morro abaixo e fogo de morro acima (touro bravio em jaula de cristal, pra me valer de metáfora que certa feita li em Tobias Barreto); segunda, governo imoral é como insaciável praga de gafanhotos nas plantações de que a parte mais pobre da população depende até para se manter biologicamente. Mas um chamamento à ordem feito de baixo para cima, porque bradado pelo povo aos ouvidos até então quase fechados do Poder Público. Os cidadãos a ter que desobstruir com sua altissonante voz os tímpanos das autoridades para lhes passar o mais legítimo dos pitos: o do retorno aos eixos das instituições em que devem atuar. Fiéis a tais instituições como única razão de ser de suas investiduras nos respectivos cargos, pois sem a necessária mediação entre elas e o povo o que sobra não é senão a tão surrada quanto venenosa receita do caudilhismo, do coronelismo, do populismo, do salvacionismo, do militarismo, do fanatismo religioso, do estelionato ideológico e outras oportunísticas mezinhas do nosso mais teimoso provincianismo político e charlatanismo representativo. O representante formal do povo a representar que o representa. Não a encarnar tal representação. Não a ser ele mesmo, porém um personagem.

Daqui se deduz que a saída tão sincera quanto inteligente e eficaz ante a crise coletiva dos dias presentes parece-me a de cerrar fileiras em torno de duas posturas igualmente coletivas: os indivíduos a ativar sua cidadania para exigir o irrestrito cumprimento da(s) finalidade(s) de cada instituição pública, tanto quanto a vigilantemente cobrar dos respectivos membros o dever de fielmente servi-las. As instituições a gravitar na órbita dos seus valores, as autoridades a gravitar na órbita das suas instituições (fora das instituições não há salvação, como pontua o economista Paulo Guedes, também colunista do jornal “O Globo”). Tudo nos marcos de uma Constituição que de tão civilizada nos aquinhoa com a sonhada democracia de três vértices: a liberal, a social e a fraternal, esta última também adjetivada de solidária ou comunitária. Com o requinte de ter na plenitude da liberdade de imprensa um elemento conceitual e de fazer do Poder Judiciário o ponto de unidade da clássica dicotomia do Poder Legislativo e do Poder Executivo. A traduzir que nada nem ninguém pode se investir na força de impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas e o Judiciário de falar por último.

É nesse contexto do Estado de Direito Constitucional e de convicção na imprescindibilidade das instituições como o cadinho em que se tempera o aço do próprio caráter coletivo (cultura é isso) que fico à vontade para afirmar que o País tem jeito. Tem jeito, sim, na medida em que faça dessa crise de existência uma imperdível oportunidade para passar a si mesmo a limpo. Para concluir que o chamado “custo-Brasil” é alto porque o casto-Brasil é baixo. Para ver o seu povo como titular do direito a administradores e governantes honestos, nos precisos termos da cabeça dos artigos constitucionais de nº 37 (princípio da “moralidade”) e 85, inciso VI (proibição de atentado à “probidade na administração”), respectivamente. Para entender de uma vez por todas, a partir do topo de sua mais depurada consciência, que este momento de crise política e moral é sua mais estratégica chance de converter a melhor normatividade constitucional na melhor experiência institucional. A consciência coletiva a jorrar luzes sobre uma nova cultura da decência para torná-la sustentável ou sem risco de retrocesso. O desalento em face de uma corrupção que parece tão sistêmica quanto renitente a ser substituído pelo alento do mais decidido combate institucional a ela, conforme têm dado sobejas demonstrações a Polícia Federal e o Ministério Público, de um lado, e, de outro, o Poder Judiciário. O que não significa a chancela (jamais pode significar) do menosprezo aos direitos e garantias fundamentais das pessoas eventualmente investigadas em matéria penal, ou denunciadas, ou mesmo já situadas no polo passivo desse ou daquele processo criminal, pois, afinal, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (inciso LVII do art. 5º da Constituição).

Com esse cada vez mais consciente império do Estado de Direito Constitucional, que tem na soberania popular e na ativação da mais vigilante cidadania os dois primeiros e explícitos “fundamentos” da nossa República Federativa (incisos I e II do art. 1º da Magna Carta), o dia-a-dia institucional desta nossa Terra Brasilis passará a correr mais desembaraçadamente pelo seu já esquadrinhado leito jurídico. Vale dizer, tudo o mais terá maiores chances de experimentar o destino feliz dos rios de antigamente, que era o de procurar a sua foz e encontrá-la. Nascente, corrente e foz de um rio chamado Brasil a coreografar a dança da sua monolítica unidade. Um novo e monoliticamente unitário País, porquanto, mais até do que mudar para melhor seus concretos comportamentos, passará a mudar também para melhor sua visão de mundo, do Direito e de si mesmo.

Carlos Ayres Britto, mestre e doutor em Direito Constitucional pela PUC de São Paulo, é escritor jurídico e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Foi ministro e presidente do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, além de presidente do Conselho Nacional de Justiça.

Artigo originalmente publicado no site Jota: jota.info

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