A independência entre os planos de responsabilização jurídica, bem como a funcionalidade reconhecida às astreintes não traduzem fundamentos adequados para legitimar multas judiciais que operam nas mesmas bases abstratas e genéricas das sanções devidamente inscritas em lei.
Por Orlando Magalhães Maia Neto, sócio do escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, para Migalhas
Publicado originalmente em 18 de maio de 2020
Introdução: as ações civis públicas do MPF e a pretensão declarada de fixar multas, judicialmente, em bases idênticas às das sanções previstas em lei
Já há algum tempo, o Ministério Público Federal tem ajuizado ações civis públicas em que veicula a pretensão de responsabilizar empresas transportadoras e embarcadoras de carga por danos materiais e morais que, alegadamente, decorreriam do excesso de peso transportado nas rodovias brasileiras.
Mais do que isso, o MPF requer a aplicação de astreintes (multas processuais) como forma de garantir, para além do desfecho da relação processual, o dever de não transportar cargas em peso maior do que o máximo normativamente permitido. Pede-se, então, que uma decisão judicial definitiva estabeleça uma multa, uma imposição pecuniária a ser cobrada, sem limite temporal, sempre que ocorrer algum descumprimento dos limites máximos de carga rodoviária. Quando acolhida, essa imposição de multa por decisão judicial tem oscilado pelos mais diversos valores: de mil reais por evento infracional ao equivalente do valor total da carga, passando por cinco mil reais, vinte mil reais ou mesmo cinquenta mil reais a cada excesso verificado. Num determinado caso, por exemplo, o Juízo de 1º Grau havia fixado a multa em cinquenta mil reais por evento, ao passo que o Tribunal a reduziu para mil reais. Não há, portanto, o mínimo grau de padronização, nem mesmo explicitação dos critérios que levam à fixação dos valores.
Convém já anotar que, independentemente do esforço postulatório do MPF, o trânsito de veículo com excesso de peso é tipificado no inc. V do art. 231 do Código de Trânsito Brasileiro como infração administrativa, sujeita a um rol de sanções também estipulado em lei. Gradação sancionatória, uniformidade de aplicação para situações equivalentes, tudo decorre do texto legal, como se exige das normas infracionais. Não apenas o excesso de peso bruto total é recriminado, como também a demasia aferida no peso por eixo. Ambas as infrações administrativas são reputadas de gravidade média.
Por um bom tempo, essas ações civis públicas eram (aliás, continuam sendo), em sua maioria, rejeitadas nos Tribunais Regionais Federais. Mais recentemente, porém, no ano passado, a Segunda Turma do STJ decidiu acolher a pretensão do Parquet federal, julgando procedente o Recurso Especial 1.574.350/SC. Foram esses os fundamentos: a) o trânsito seguro é um direito de todos, nos termos do CTB; b) são altos os índices brasileiros de letalidade no trânsito; c) a atuação judicial seria uma forma de concretizar direitos, pois “legislação temos de sobra, sem falar de políticas governamentais e princípios jurídicos apoiados na razão, na experiência e em expectativas comuns dos povos”; d) uma das valias da intervenção judicial reside na substituição de medidas administrativas incompletas ou deficientes, “de maneira a inteirá-la ou aperfeiçoá-la”; e); as esferas de responsabilização administrativa, civil e penal são independentes; f) a sobrecarga causa danos materiais e extrapatrimoniais in re ipsa (leia-se: presumidos), confirmados pela experiência comum, de modo a dispensar-se a comprovação pericial de algum dano específico à infraestrutura rodoviária.
O objetivo do presente artigo, então, é demonstrar que, sem desconsiderar a inegável independência entre os diferentes planos de responsabilização jurídica, e sem descurar da funcionalidade das astreintes, não se sustenta o entendimento de que a mera ocorrência de uma determinada conduta prevista em lei pode ensejar, em bases genéricas e abstratas, não apenas a sanção positivada, como também uma determinada reprimenda fixada judicialmente – e, portanto, sem correlação com a ocorrência de um determinado dano em concreto.
O Código de Trânsito Brasileiro e o regime legal do excesso de peso nas rodovias: a valoração normativa da conduta (infração de gravidade média) e a designação legal de suas consequências sancionatórias
O CTB é a norma legal que se ocupa, no Direito brasileiro, da ordenação do trânsito, assim entendido como “a utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estacionamento e operação de carga ou descarga” (§1º do art. 1º). Sob esse encarecido propósito é que o CTB: a) institui limitações administrativas ao trânsito de pessoas e cargas; b) prevê as sanções correlatas, em caso de descumprimento dessas limitações. Tudo em linha, portanto, com o princípio constitucional da legalidade, inscrito nos incs. II e XXXIX do art. 5º e no caput do art. 37 da Carta Magna.
No que atine especificamente ao trânsito de veículo com excesso de peso, trata-se, como dito, de conduta tipificada no inc. V do art. 231 como infração administrativa de gravidade média (numa escala que se inicia com o tipo leve e alcança a espécie gravíssima). As consequências sancionatórias, por óbvio, são predeterminadas e consistem no seguinte: multa pecuniária, numa escala diretamente proporcional à dimensão do excesso, retenção do veículo e transbordo da carga excedente.
Eis o quadro: no Direito brasileiro, o simples fato de se transitar com uma carga em sobrepeso é caracterizado como ato infracional de lesividade média (e não grave, nem gravíssima) e, nessa medida, já autoriza o Estado a aplicar as sanções previstas em lei. Sem que, para tanto, se exija a comprovação de algum dano específico ou in concreto. Isso porque o Estado já incorporou em lei, como pressupõe o Estado Democrático de Direito, o juízo de reprovação sobre a conduta – assim esgotando, em linha de princípio, as possibilidades interventivas sobre o trânsito rodoviário com sobrecarga.
Deveras, fora desse esquadro legal-administrativo, a atuação estatal já desborda para os planos civil e criminal. Quanto a eventuais desdobramentos criminais do excesso de peso transportado, eles dependem da comprovação de materialidade e autoria de um determinado tipo criminal. Para a matéria em comento, porém, importam mais as repercussões da sobrecarga na dimensão da responsabilidade civil, pois o STJ se fiou na sua independência quanto à esfera administrativa para validar a imposição judicial de multas incidentes por eventos infracionais.
Os diferentes pressupostos do sancionamento administrativa e da responsabilização civil: a) a tutela geral e abstrata de bens jurídicos como fundamento da regulação administrativa e do poder de polícia, e não da imputação civil de responsabilidade; b) o equívoco do STJ em não evidenciar um dano concreto (e o seu nexo causal com a conduta em questão) como passo antecedente à condenação inibitória e indenizatória de natureza civil; c) as astreintes como medida correlacionada à validade da obrigação que se quer garantir pela decisão judicial
Ao tipificar, em lei, uma conduta como infração administrativa, o Estado exerce, pelos canais legítimos de deliberação democrática, o juízo de reprovabilidade do fato, assim calibrando a reprimenda que entende apta a: a) punir o infrator, b) recompor a ordem administrativa; c) dissuadir o infrator e a sociedade quanto à reiteração das condutas. Trata-se das funções clássicas das normas infracionais, entre elas a decantada função de prevenção geral e especial.
Tudo constando da lei (a hipótese ilícita e as sanções correlatas), basta a prática do ato infracional para que se deflagrem os efeitos sancionatórios. Reprovabilidade, lesividade e resposta estatal passam a marcar presença por modo normativo, por desígnio da vontade legislativa do Estado mesmo.
No caso do tráfego com excesso de peso, a conduta é valorada como de potencial lesivo médio, ensejando multas proporcionais ao grau de sobrepeso, além da retenção do veículo e do transbordo do excesso. Praticado o excesso de peso nas rodovias, tais sanções devem ser aplicadas, independentemente da ocorrência concreta de algum dano à infraestrutura viária ou à integridade física ou patrimônio de terceiros. O potencial lesivo da conduta é internalizado na disposição normativa. Uma disposição normativa voltada, ela mesma, à tutela dos bens jurídicos em causa: a infraestrutura rodoviária do país e a segurança do trânsito.
Não se ignora, por óbvio, que os mesmos fatos tipificados como infrações administrativas possam resvalar para algum tipo de ilícito civil. Nesse caso, porém, a aferição da responsabilidade já escapa ao modelo de presunção normativa próprio da regulação administrativa. A responsabilização civil extracontratual depende da evidenciação concreta e específica de um dano e do nexo causal entre ele e a conduta em causa, por efeito dos arts. 186, 403 e 927 do Código Civil.
E é nesse contexto, portanto, que há de ser aplicada a multa judicial coercitiva, dado o seu caráter meramente instrumental, voltado para estimular o cumprimento de uma obrigação que atenda aos seus pressupostos normativos. Multas judiciais coercitivas se justificam pela obrigação subjacente à decisão judicial que as impõe, e não pelo simples fato de ser veiculada por ela, decisão judicial. Aliás, essa é a dinâmica de toda e qualquer decisão judicial: ela se legitima pelo seu lastro normativo, justamente.
Ocorre que a Segunda Turma do STJ não fez essa distinção básica e, para enveredar nos caminhos da responsabilização civil e da correlata imposição de astreintes, simplesmente afirmou que o Poder Judiciário deve proteger os mesmos bens jurídicos tutelados pelo legislador do trânsito (infraestrutura rodoviária, segurança física e patrimonial das pessoas, meio ambiente e ordem econômica). Dando-se que o simples fato da violação à norma administrativa proibitiva já legitimaria a imposição judicial de multas coercitiva, até como forma de “resguardar o seu [dela, proibição legal] caráter imperativo”.
Essa, portanto, a perplexidade que ressai da posição do STJ: a pretexto de laborar no espaço constitucional de independência entre as esferas administrativa e civil, fundamentou-se a imposição de multas inibitórias em caso de excesso de peso: (i) na defesa genérica e abstrata dos bens jurídicos que já são tutelados pela disciplina legal do tema; (ii) num heterodoxo e incogitável reforço judicial de efetividade ou imperatividade da norma.
Nada, absolutamente nada, foi mencionado quanto à existência de um dano concreto eventualmente causado, a esse ou aquele sujeito de Direito, pelas infrações administrativas versadas no processo. Tudo ficou no campo da correlação genérica, abstrata e presumida entre as infrações administrativas aludidas e a tutela dos bens jurídicos que subjazem à disciplina do trânsito nacional. Embora nos pareça autoevidente que esses planos da abstração, da generalidade e da aferição de efetividade da norma sejam próprios do legislador e, subsequentemente, da regulação administrativa. Nunca, porém, do Poder Judiciário, mormente diante de uma lide concreta em que se discute o tema da responsabilidade civil.
Seria despiciendo, mas não custa registrar que o estado geral das rodovias brasileiras seguramente não pode ser invocado para justificar (e, menos ainda, delimitar) o dano causado por uma determinada empresa que trafega numa fração bastante reduzida da malha rodoviária nacional. Um evento causado por uma multiplicidade de fatores (e até mesmo como um processo natural) não pode ser levado em consideração, assim por modo genérico e aleatório, para embasar uma condenação indenizatória.
Não há método nem técnica, qualitativa ou quantitativa, de identificação dos eventuais danos causados pelas práticas infracionais da empresa em relação ao processo de deterioração das rodovias. Desgastes naturais, falhas de projeto, aplicação de materiais de baixa qualidade, falta de manutenção adequada, movimentação de veículos sem cargas (a imensa maioria em trânsito no País), tudo isso (e mais outros tantos fatores) concorre para a deterioração das rodovias brasileiras. Dando-se, então, que o tráfego com excesso de peso não pode ser considerado como causa adequada (logo, suficiente e indispensável) dos eventuais déficits de qualidade apresentados pelas rodovias federais.
Portanto, ao acolher o pedido do MPF, a Segunda Turma do STJ impôs condenação, mais do que ilíquida, indeterminável, pois a decisão não aporta nem mesmo os conteúdos ou as balizas mínimas para individualização dos danos a serem reparados – dada a impossibilidade de fazê-lo.
Convém ressaltar, ainda, que são dois os tipos de infração por sobrecarga: o excesso de peso pela carga total bruta e o excesso de peso por eixo. Na imensa maioria dos casos, os embarques acontecem com todas as cautelas, respeitando-se ambas as determinações normativas. Todavia, em decorrência da movimentação do veículo ao longo do trajeto, a carga acaba se deslocando, o que acarreta um peso excedente por eixo, e não da carga como um todo – já afastando, aliás, a conjectura vazia de que as empresas fariam da sobrecarga um modus operandi ou uma estratégia de favorecimento logístico ou empresarial.
Outra cogitação que deve ser rechaçada é a da suposta contumácia das empresas nas infrações. Comparados os números de multas administrativas com o total de saídas de cargas praticadas por essa ou aquela empresa, a porcentagem a que se chega, invariavelmente, é mínima, irrisória. Mais detalhes sobre os aspectos operacionais envolvidos no tráfego de carga podem ser encontrados aqui.
Em suma, no que atine à fixação de danos materiais eventualmente causados ao pavimento das rodovias federais, é imprescindível que sejam demonstrados a conduta ilícita, o dano e o nexo de causalidade. Para ser indenizável, o dano material há de ser certo, não havendo que se falar em reparação de dano eventual ou presumido ou aleatoriamente delimitado. Esse o texto normativo expresso, esse o entendimento tradicional e invariavelmente subscrito por doutrina e jurisprudência. Um entendimento que não se coaduna, nem minimamente, com a pretensão deduzida pelo MPF, conforme evidenciado acima.
O teste de universalização da tese chancelada pela Segunda Turma do STJ e a demonstração de sua fragilidade: o Poder Judiciário como instância revisora da adequação e da efetividade das mais diversas regulamentações administrativas?
Mas não é só. O desacerto do entendimento subscrito pela Segunda Turma do STJ torna-se ainda mais evidente quando se testa a possibilidade de se universalizar a tese nele contida.
Afirma-se que o Poder Judiciário poderia impor multas coercitivas específicas para tutelar (diretamente, em paralelo à mediação da lei) os bens jurídicos associados à disciplina do excesso de peso nas rodovias. Isso sem que dele, Judiciário, se exija a demonstração da ocorrência concreta e específica de algum dano à infraestrutura rodoviária, à integridade física e patrimonial de terceiros, etc. Tudo, portanto, a se dar em bases genéricas e abstratas.
Pois bem. O resultado dessa tese estaria na franquia aberta à revisão judicial de todo e qualquer modelo legislativo-regulatório. Afinal, o que impediria, de agora em diante, que Juízes impusessem multas coercitivas incidentes sobre a conduta proibida de conduzir motocicletas sem o acionamento dos faróis (inc. IV do art. 244)? E multas inibitórias a serem aplicadas para os veículos que excederem a capacidade máxima de tração (inc. X do art. 231)? O que dizer do trânsito com o veículo em desacordo com as especificações, e com falta de inscrição e simbologia necessárias à sua identificação, quando exigidas pela legislação (art. 237)?
Todas essas condutas traduzem infrações de natureza grave ou gravíssima e, portanto, reputadas pelo CTB como de maior potencial lesivo do que o tráfego com excesso de peso. Como o Poder Judiciário irá se portar diante delas? Irá associa-las abstratamente aos bens jurídicos tutelados pelo CTB e, nessa medida, cominará multas coercitivas em reforço à previsão legal? Ou exercerá uma espécie de revisão judicial do modelo legislativo de trânsito, apenas reforçando as reprimendas das condutas que ele, Poder Judiciário, entender mais lesivas aos bens jurídicos associados ao trânsito nacional? Todas essas são indagações que ficam sem resposta sob o pálio do Estado Democrático de Direito, pois ao Poder Judiciário não é dado laborar nesse campo.
Os problemas decorrentes da tese firmada no acórdão recorrido não se adstringem, todavia, à interação do Poder Judiciário com o sistema normativo de trânsito. Todo e qualquer segmento de atividade humana que esteja sujeito a limitações administrativas ficaria à mercê desse modo de pensar, que envolve a tutela judicial direta de bens jurídicos abstratos (e não de lesões concretas), notadamente sob o argumento do reforço de efetividade ou imperatividade da norma. Regras de direito urbanístico, limitações ao exercício profissional, regulação do desempenho de certas atividades econômicas (farmacêuticas, por exemplo), todo o sistema normativo de limitação, proibição e repressão de condutas nessas matérias estaria passível de revisão abstrata pelo Poder Judiciário, assim justificada pela independência da esfera civil e da instância judiciária, independentemente da ocorrência de uma lesão concreta e específica.
Daqui já se desata, portanto, o juízo conclusivo de que esse modelo de intervenção judiciária é manifestamente vedado, na medida em que atentatório ao princípio da legalidade (art. 5º, incs. II e XXXIX, e caput do art. 37), ao sistema de separação de Poderes (art. 2º), à competência do legislador para dispor sobre trânsito e transporte (art. 22, inc. XI), à disciplina legal da responsabilidade civil (arts. 186, 403 e 927 do CC) e à própria disposição proibitiva do trânsito com excesso de peso (art. 231, inc. V, do CTB).
Conclusão
Centralmente, o que se conclui é que a independência entre os planos de responsabilização jurídica, bem como a funcionalidade reconhecida às astreintes não traduzem fundamentos adequados para legitimar multas judiciais que operam nas mesmas bases abstratas e genéricas das sanções devidamente inscritas em lei.
Quando se alude à ideia de bis in idem, não se o faz para negar a multicitada independência entre a responsabilidade administrativa e civil. Essa, por si só, é incontroversa, como visto neste artigo. O bis in idem se configura, porém, quando se rotula de responsabilização civil, artificialmente, a imposição judicial de multas coercitivas devidas pela mera incorrência em determinada conduta, sem alegação (menos ainda demonstração) de um dano concreto e de seu nexo de causalidade. É aí que toma corpo o fenômeno vedado do bis in idem, aqui perpetrado pelo Poder Judiciário. O que já se põe em rota de colisão frontal ao Estado Democrático de Direito e ao modelo constitucional de separação dos Poderes.
Diante de um quadro como esse, espera-se que a Segunda Turma do STJ possa reconsiderar a posição que firmou recentemente. Ou, quando menos, que a Primeira Turma possa reconduzir a matéria aos quadrantes da validade e da legitimidade constitucional.
Fonte: Migalhas
Processo: REsp 1913392 (Tema Repetitivo nº 1104)
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