Da faca nos dentes à poeira assentada

Carlos Ayres Britto

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 378 desencadeou um bom efeito prático. Independentemente de refletir ou não a precisa vontade objetiva dos dispositivos constitucionais aplicados, ela suspendeu um estado coletivo de ânimos que já recendia a vias de fato. A pugilato cada vez menos de ideias e cada vez mais de ironias, gozações, xingamentos, pescoções. As últimas sessões da Comissão de Ética da Câmara dos Deputados Federais dizem tudo. O clima era de faca nos dentes dos que ansiavam pelo impeachment da presidente Dilma a toque de caixa e repique de sino e dos que se esbofavam para salvar a pele de Sua Excelência a qualquer custo. Com a circunstância agravante de que o processo contra o deputado Eduardo Cunha, acusado de quebra de decoro parlamentar, era como que um irmão siamês do outro (o do impeachment) em marchas e contramarchas. Convicções e negaceios. Conchavos e jogo aberto.

Com efeito, creio não carregar nas cores com que estou a pintar o quadro nacional de então. A economia parada, a imprensa a bater na tecla do impeachment e do processo na Comissão de Ética, a presidente Dilma e demais dirigentes públicos a fazer da mesmice o seu espelho de cristal, os níveis de desemprego a subir sem vergonha na cara, as conversas domésticas a girar em torno de assuntos que nada tinham de domésticos e tudo tinham de político-partidários, as redes sociais a balançar em alturas nunca antes vistas na história deste país, os blogs a expelir fogo pelas ventas. E tome Lava Jato, Polícia Federal, Sérgio Moro, Rodrigo Janot…, febricitando um final de ano que até já se conformava em sacrificar seu Natal e réveillon. Atônito com a percepção de que tanto derramamento de bílis em nada combina com produção de neurônios.

Foi quando veio a decisão do Supremo. Veio para confirmar o civilizado entendimento de que, assim como não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, também não se pode impedir o Judiciário de falar por último. As controvérsias não podem se perder no infinito ou resvalar para a temerária zona do interminável. Quando o pronunciamento final sobre elas se encarta nas competências do Poder Judiciário, quem fala por último não é senão o órgão de cúpula desse Poder, encarnado no Supremo Tribunal Federal. Assim chamado de Supremo por lhe competir a guarda final do Código Jurídico supremo que atende pelo nome de Constituição. Ela a emprestar sua hierarquia suprema a ele, e não o contrário.

Há um preço a pagar, todavia, por esse poder de falar por último. Há antídotos igualmente constitucionais para tal empoderamento. Antídotos ou anteparos normativos de que servem de amostra a antecipada inclusão dos processos na pauta de julgamentos da Corte, a publicidade das sessões de turmas ou, então, do pleno, as sustentações orais dos advogados, dos amici curiae e do procurador-geral da República, o contraditório argumentativo entre os próprios ministros, a fundamentação técnica e a natureza aberta de cada voto e de cada acórdão, a publicação dessa decisão colegiada em que todo acórdão consiste e sua exposição a recursos de embargos. Anteparos que asseguram a legitimidade do processo e do julgamento final. Legitimidade, então, pelo modo de exercer a jurisdição. Não exatamente pela infalibilidade técnica no identificar, analisar e interpretar fatos e normas, que a tanto não chegam o engenho e a arte dos doutores da lei.

Nem mesmo daqueles que oficiam nos tribunais de única ou de última palavra, seja no Brasil, seja em qualquer outra parte do mundo.
Pois bem, esse preço assecuratório da legitimidade das suas decisões o STF pagou no processo em causa. Pagou à vista e sem regatear. Foi transparente, dialogante, desassombrado, célere e independente nos dois sentidos que interessam: o técnico e o político. Daí a força pacificadora do seu julgado. Daí a metáfora da substituição da faca nos dentes pelo assentamento de poeira. O que faz reinstaurar no País o necessário clima de sensata e respeitosa discussão de todos esses candentes, encadeados e seriíssimos temas; quais sejam os da crise ética, política e econômica subjacentes à Operação Lava Jato e aos dois processos contra o presidente Cunha e contra a presidente Dilma.

Quanto ao mérito da decisão, aí me permito vocalizar o juízo de que o Supremo acertou em alguns pontos e errou em outros. Acertou, por exemplo, na proclamação de que mediante voto em aberto é que se forma a comissão especial a que se refere o artigo 19 da Lei n.º 1.079/50.

O impeachment é a mais externa corporis das relações entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, não se confundindo jamais com processo legislativo. Um processo e outro são como água e óleo: não se misturam. Por isso que o seu regime jurídico é de reserva constitucional e da Lei Especial 1.079 (não de regimento interno), que em nenhum momento falam de sessão ou de voto em sigilo. Mas errou, data vênia, em acumular no Senado Federal as competências para processar e julgar o presidente da República e ainda negar trâmite a juízo formal de admissibilidade da acusação, eventualmente feito pela Câmara dos Deputados e sem desobediência a formalidades legais elementares. Esquecido do advérbio de modo “privativamente” que se lê tanto no artigo constitucional definidor das competências da Câmara quanto do Senado (cabeça dos artigos 51 e 52, respectivamente). A revelar que, na matéria, cada qual das Casas Legislativas atua em faixa própria. O que é privativo de uma Casa Legislativa é somente dessa Casa mesma. Não admite compartilhamento. Pré-exclui a competência da outra para deliberar sobre o mesmo assunto, em suma. Pouco importando que uma delas seja coloquialmente (não positiva ou normativamente) etiquetada como Câmara Baixa e a outra como Câmara Alta. Cada qual no seu quadrado, então, eis a decisão correta que deixou de ser tomada e com todo o respeito é que assim me pronuncio.

Fonte: o Estado de São Paulo

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