*Carlos Ayres Britto
A crise brasileira dos dias presentes é um divisor de águas. Divide um Brasil multissecularmente patrimonialista e um Brasil que decidiu extirpar de si essa primeira e mais grave causa de sua fragilidade estrutural.
Um foco de fragilidade estrutural -esse tal de patrimonialismo- que se desdobra numa diabólica trindade: a corrupção sistêmica, o desperdício mais desenfreado de recursos públicos, o corporativismo de todos os matizes e disfarces. Tudo junto a impedir que o substantivo “sacrário” rime com “erário”.
Esta a maior e mais bela de todas as novidades: a firme decisão coletiva de expulsar dos quadrantes da nossa história a fera praticamente imemorial do patrimonialismo.
Perceptível que fechar de vez suas torneiras antecipa a certeza de que vai sobrar dinheiro para o novo Brasil compatibilizar sua enorme riqueza material com a prosperidade igualmente material de todo o povo. O que já pressupõe compatibilizar poder e pudor. Também perceptível que ética na política é a mais bonita arte de se dar ao respeito.
Nesta última e dúplice compatibilização, o porto. O porto seguro de um Brasil depuradamente ético e materialmente justo. Que não é senão o mais acalentado sonho de um Brasil primeiro-mundista. Logo, tão civilizado quanto humanista.
Este Brasil que, também nos dias presentes, está sob visível trabalho de parto. Um parto fluente, em demanda de um porto seguro. O porto como fenômeno pós-parto, então, que para isso a Constituição de 1988 concebeu uma democracia pra valer.
A situação é esta: a democracia pós-Constituição de 1988 está a parir um novo país. Trabalho de parto delicado, cuidadoso, paciente, dificultoso, doído, em suma, porém firmemente decidido a chegar ao melhor dos resultados: um Brasil novinho em folha.
Um Brasil em busca de sua identidade por cima. Tão honrosa quanto socialmente justa. Sem nenhum continuum com o velho Brasil dos craques da coxia, dos camarins, dos bastidores. Matreiros artífices do coronelismo, numa linguagem político-sociológica. Do caciquismo, num vocabulário político-partidário. Do caixa-dois e do diabo-a-quatro, já numa tristíssima dimensão eleitoral e de um compadrio político-empresarial tão ganancioso que faz mentores e operadores perderem toda noção de limite ético e lógico.
Mas alentador é perceber que a demora de correção de rumos se atenua mais e mais. É que a democracia brasileira já dispõe de uma equipe de parto que não dorme em serviço. Além do que tão crescentemente numerosa quanto mentalmente emancipada. Tão em sentido orgânico ou subjetivo quanto operacional ou objetivo.
Falo, por ilustração, da liberdade de imprensa em plenitude. Da soberania popular que se manifesta por iniciativas de projetos de leis. Da cidadania que sai às ruas, praças e avenidas. Da cidadania dos aplicativos de internet, a plasmar um novíssimo e heterodoxo tipo de democracia mesma, porquanto nem indireta ou representativa, nem direta ou participativa.
Mas um tipo de democracia subjetivamente difusa, geograficamente universal e temporalmente instantânea ou online. Que não decide nada, mas a que chega mais rapidamente aos calcanhares e às sinapses (para não dizer tremores) neurais dos que decidem sobre tudo.
Também à guisa de ilustração, falo dos novos mecanismos dos sistemas de compliances e dos acordos de leniência. Do instituto da colaboração premiada, esse utilíssimo coadjuvante no desvendamento de crimes perpetrados por organizações criminosas, desde que aplicado, óbvio, com toda observância do devido processo legal substantivo.
Da lei de acesso à informação do cotidiano estatal. Da obrigatoriedade de publicação das folhas de pagamento dos agentes públicos. Das instituições estatais que não têm o poder de governar, é certo, mas dotadas do poder de impedir o desgoverno. Caso dos Tribunais de Contas e daquelas integrantes do sistema de Justiça, com ênfase para o Poder Judiciário, as Defensorias Públicas, o Ministério Público e os órgãos de segurança pública, estes últimos quando no desempenho da chamada polícia judiciária.
Com a peculiaridade de que o Ministério Público brasileiro foi tão empoderado pela Constituição que mantém com a pessoa jurídica do Estado uma linha direta ou sem a mediação de nenhum dos Poderes da República.
Isto por lhe caber “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127). Finalidades que balizam, orientam o tempo todo o próprio exercício das funções que a ele compete, inclusive monopolizar o exercício da ação penal pública incondicionada.
O Brasil tem jeito. Aquele agente que não tiver passado também já não terá futuro.
*CARLOS AYRES BRITTO, doutor em direito constitucional pela PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi presidente do Supremo Tribunal Federal
FONTE: Folha de São Paulo