Lições do impeachment

Carlos Ayres Britto

Nunca se falou tanto de impeachment nesta quadra da vida em que até as palavras já não gozam de intimidade. Nem elas conseguem ficar a sós consigo mesmas. Os paparazzi somos todos nós e é num piscar de olhos que transitamos das pessoas para os dicionários e vice-versa. Basta alguém riscar um fósforo na direção de outrem, ou de algo, para um terceiro chegar ali colado e já de capinzal a tiracolo. O fogaréu é em tempo real, porque online. Paciência! Paciência, e se as coisas se nos dão assim como um imperativo kantiano, que tiremos o melhor proveito coletivo delas. Que nos transformemos de paparazzi em cidadãos cada vez mais partícipes da arquitetura do nosso próprio destino.

É o que podemos fazer em tema de impeachment, justamente. Ele está ali bem focado, bem postado, bem centrado nos artigos 85 e 86 da Constituição para um eventual uso. Não é golpe falar dele. Nenhum tema da Constituição, nem do Direito em geral, ou da vida em sua universalidade mesma se pode blindar quanto à respectiva discussão a qualquer momento. Em qualquer lugar. Sob qualquer assistência ou protagonização humana. Golpe é tão somente quando se dão pedaladas na Constituição para aplicar o instituto a ferro e fogo. De qualquer jeito. Sem que estejam presentes os respectivos pressupostos. No pior estilo oportunista que se contém nesta frase de Epicuro (341-270 a.C.): “Quando a tentação chegar, ceda logo antes que ela vá embora”.

Não é assim de afogadilho que o tema se equaciona. Até porque ele se põe como a figura de Direito mais “externa corporis” das relações entre o Poder Legislativo da União e o presidente da República. Nem mesmo a berrante voz da crise econômica justifica um pular de cerca da nossa Lei Fundamental. Uma Lei Fundamental do mais alto merecimento intrínseco, ajunte-se, porquanto consagradora da democracia como o princípio dos princípios jurídicos; ou seja, da democracia como o valor-teto, o valor-continente e o valor-síntese de todos os outros. A instituição que tem por conteúdos a República e a Federação brasileira, nessa ordem (o Brasil é uma República Federativa, e não uma Federação Republicana). Uma Constituição, em suma, que desde o seu artigo 1.º define o Brasil como um “Estado Democrático de Direito” porque somente a partir desse fundamento é que se pode legitimamente subir ao podium de “uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I do artigo 3.º). Fins legítimos a alcançar por meios igualmente legítimos.

Esta a primeira lição. A lição da compatibilidade entre o Estado Democrático de Direito e o tema do impeachment de quem esteja como presidente da República. Seja o impeachment enquanto processo de acusação e julgamento, seja o impeachment enquanto pena ou resultado condenatório. Aqui, a implicar “perda do cargo, com inabilitação, por 8 anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis” (parágrafo único do artigo constitucional de n.º 52). Ali, a pressupor um devido processo legal do tipo substantivo ou verdadeiramente fiel às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Salto para o que me parece a segunda grande lição. A lição de que não basta a eleição popular como forma de legitimidade da investidura no cargo de presidente da República brasileira. Tal eletividade se traduz numa das fases da legitimidade política; isto é, caracteriza a fase da legitimidade originária ou no ponto de partida das coisas. A legitimidade que os narradores das corridas de automóvel chamariam de grid de largada. O que não elimina jamais o percurso do mandato presidencial, destinado à concreção de um segundo tipo de legitimidade: a legitimidade pelo desempenho. A legitimidade pelo exercício. A legitimidade pela não incidência nos “crimes de responsabilidade”. Tipologia de delitos a que vai corresponder um atestado de inadaptabilidade do chefe do Poder Executivo da União à ordem constitucional. Que não é senão um estilo de governo insultuoso ou afrontoso ou acintoso da Constituição mesma. Donde o citado artigo 85 falar dos crimes de responsabilidade como “os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição”. Contra a Constituição, sim (este o bem jurídico protegido), especialmente pelos sete conteúdos que o mesmíssimo artigo 85 lista por um modo inelástico.
Na base do mexeu com eles, mexeu comigo…

Mas não é só por crimes de responsabilidade que a nossa Constituição possibilita a desinvestidura punitiva do presidente da República. Ela vai mais longe. Faz-se mais rigorosa no aviamento de antídotos contra as eventuais malfeitorias do chamado primeiro mandatário do País. Mais severa no aperto do cerco em face de quem detém uma tríplice chefia: a da administração pública, a do governo e a do Estado. Donde as seguintes passagens normativas: a) impugnação do próprio mandato, por motivo de “abuso do poder econômico, corrupção ou fraude” (§ 10 do artigo 14); b) “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos”, tanto quanto em ação cível de “improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4.º” (incisos III e V do artigo 15). As duas últimas destituições como consequência do link operacional que o mesmo artigo 15 estabelece entre condenação judicial e suspensão dos direitos políticos.

Estamos bem servidos de normatividade constitucional, portanto. Mas uma normatividade que diferencia os institutos. Crime de responsabilidade é uma coisa, as demais ilicitudes são outras. Cada qual com o seu peculiar regime jurídico, inclusive no plano da lei, embora os resultados possam coincidir em certa medida. A hora é de certificar a nossa maturidade jurídica. Não a de misturar alhos com bugalhos, precipitadamente. Distinção que Martin Luther King bem soube fazer quando disse que: “Não me interessa conhecer as suas leis, porém os seus intérpretes”.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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