Por Saul Tourinho Leal*
Ocorreu, dia 12/6/2017, no Supremo Tribunal Federal, audiência pública a respeito do chamado “direito ao esquecimento”, vinculada ao RE 1.010.606, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que deliberará sobre o Tema 786 da repercussão geral: “Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares”.
É importante conhecer os fatos que ilustram o caso. No começo do século passado, Gattás Assad Curi e Jamila Jacob Curi migraram da cidade de Saidnaya, nas montanhas da Síria, a 30 quilômetros de Damasco, para o Brasil, onde tiveram cinco filhos: Nelson, Roberto, Maurício, Waldir e Aída. Com a morte do pai, em 1944, quando Aída tinha somente 5 anos, ela foi enviada pela mãe para uma escola de freiras católicas espanholas na cidade do Rio de Janeiro, encarregada de educar, em regime de internato, meninas órfãs.
Em julho de 1958, aos 18 anos, Aída foi a um apartamento em Copacabana, com dois rapazes. Ao tempo, ela, repleta de talentos, havia feito curso de datilografia, tocava piano, falava inglês e já trabalhava.
Aída subiu até o terraço do prédio com os jovens. A partir dali, um crime bárbaro seria perpetrado. Ela foi espancada, sofreu tentativa de estupro coletivo e terminou sendo atirada do alto do edifício.
Dois dos assassinos, Ronaldo Guilherme de Souza Castro e Cássio Murilo Ferreira – este, menor e filho de uma alta autoridade militar -, eram jovens que viviam em conforto e imitavam artistas de Hollywood, com suas lambretas, jaquetas de couro, topetes, rock and roll e brigas de gangues. Era a “Juventude Transviada”.
Os réus passaram por três julgamentos. Absolvido num segundo julgamento junto ao cúmplice, porteiro do prédio, Ronaldo, de óculos escuros, ouviu no Tribunal salvas de palmas e gritos em sua homenagem, de uma plateia formada por garotas e garotos de vinte e poucos anos que o viam como o herói cruel que sacodira um Brasil conservador. Segundo a influente revista O Cruzeiro, “em São Paulo, durante um baile em que se dançava ‘rock’n’roll’, meninas e molecotes gritaram ‘Ronaldo! Ronaldo!’, no instante em que lá chegou a notícia de que o matador de Aída conseguira escapar às garras curtas da Justiça”. Enquanto isso, o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara, liderava uma campanha pela apuração do crime.
Ronaldo terminou condenado, em 1963, num terceiro julgamento, a oito anos e nove meses de prisão por homicídio e tentativa de estupro.
Cássio, menor e enteado do síndico – uma autoridade militar -, não foi julgado. Em 1967, ele matou um vigilante, tendo sido condenado a 30 anos de prisão. Permaneceu no exterior, sustentado pela família, até que o crime prescrevesse.
Manoel Antônio da Silva Costa, que entregara a chave do terraço, foi condenado a um ano e três meses de prisão por crime contra os costumes.
Antônio João de Souza, o porteiro, foi condenado num primeiro julgamento, mas absolvido depois. Nunca mais foi visto.
Em 2004, a emissora de televisão, Rede Globo, dedicou um programa ao crime. Visando abordar de maneira popular crimes bárbaros e discutir suas causas e formas de não vivê-los novamente, a emissora lançou o programa Linha Direta Justiça. Em uma de suas edições, o crime cometido contra Aída foi abordado. A emissora abriu um fórum de discussão em sua página na internet. Várias pessoas participaram. A maioria era formada por mulheres.
Ao final do programa, uma enquete perguntava: “Passados quase 50 anos, você acha que hoje as mulheres são mais respeitadas ou menos respeitadas pelos homens?”. A partir daí, a comunidade pôde se fazer ouvir por meio do website www.globo.com/linhadireta. No “Fórum para a sociedade”, inúmeras mulheres deixaram o medo de lado e se fizeram ouvir. Foram depoimentos que revelavam desesperança com a condição da mulher no país e, também, grande revolta com a impunidade.
Os irmãos da vítima, contudo, haviam se oposto formalmente à exibição do programa. Ajuizaram uma ação pleiteando indenização por danos materiais e morais, além do pedido de censura-prévia à emissora quanto a futuras menções ao crime. Não há mulheres compondo qualquer dos polos da disputa.
A primeira decisão entendeu que a emissora cumpriu seu papel. A partir da apelação, passou-se a invocar o direito ao esquecimento, não em nome da vítima, mas no dos irmãos. O caso chegou à Suprema Corte.
Quase sessenta anos após o assassinato de Aída, a taxa de feminicídios no Brasil é de 4,8 para 100 mil mulheres – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em agosto de 2006, foi sancionada a lei 11.340, a “Lei Maria da Penha”, visando incrementar o rigor das punições para crimes de violência contra a mulher. Em 2015, alei 13.104 alterou o art. 121 do Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio. Também alterou o art. 1º da lei 8.072/1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. O crime cometido contra Aída é hediondo. Pela Constituição, eles são imprescritíveis, não podendo – nem devendo – ser esquecidos.
Conceder ou não um pedido de indenização contra veículos de comunicação em nome do direito à privacidade não é algo incomum. Há inúmeras leis domésticas que fundamentariam qualquer que fosse a decisão. Não parece haver complexidade suficiente a ponto de a Suprema Corte desconsiderar o ordenamento jurídico ao qual está vinculada e buscar em diretivas europeias, e decisões estrangeiras sobre o direito ao esquecimento, orientação para uma questão jurídica que, sinceramente, chega a ser trivial.
Ainda que se queira conhecer a forma que outras nações lidaram que a questão da lembrança, talvez valha conhecer experiências em países cujas dores se aproximam das nossas. A África do Sul, por exemplo, viveu com intensidade uma experiência de resgate de suas próprias lembranças, ainda que dolorosas.
A Constituição sul-africana de 1996, abraçada por Nelson Mandela, abriu espaço para a posterior criação da Comissão da Verdade e Reconciliação, cujo estatuto de fundação incluiu a filosofia comunitarista ubuntu – “eu sou porque nós somos” – como um dos seus princípios fundadores.
Presidida pelo Prêmio Nobel da Paz, o arcebispo Desmond Tutu, a Comissão dedicou parte do seu trabalho a ouvir as pessoas simples, cidadãs e cidadãos comuns, que provaram o apartheid em suas experiências cotidianas.
Mais de vinte mil manifestações chegaram à Comissão. Foi por intermédio dela que a história de Phila Ndwandwe, uma heroína sul-africana, foi lembrada.
Phila foi morta a tiros pelas forças de segurança do governo do apartheid, depois de ser mantida nua durante semanas na tentativa de fazer com que delatasse seus companheiros. Manteve sua dignidade confeccionando calcinhas e usando uma sacola plástica azul, vestimenta que foi encontrada envolvendo sua pélvis quando de sua exumação. “Ela simplesmente não falava”, testemunhou um dos policiais envolvidos em sua morte. “Meu Deus…, ela era corajosa”.
A artista plástica sul-africana Judith Mason chorou ao ouvir os depoimentos dos assassinos de Phila perante à Comissão. “Quem dera eu ter podido fazer um vestido para você”, disse. A artista juntou sacolas plásticas azuis descartadas e as cozeu, fazendo um vestido. Na saia, pintou a seguinte carta:
Irmã, uma sacola plástica talvez não seja a armadura completa de Deus, mas você estava lutando com unha e dentes e contra poderes superiores, contra os senhores da escuridão, contra a maldade espiritual em lugares sórdidos. Suas armas era seu silêncio e um pouco de lixo. Achar aquela sacola e vesti-la até ser exumada foi algo tão frugal, sensato, um ato de esposa zelosa, um ato simples…, em algum nível, você envergonhou seus captores, e eles não acrescentaram a seus maus tratos um segundo desnudamento. Mesmo assim, mataram você. Só sabemos sua história porque um homem com um riso constrangido lembrou-se de como você foi corajosa. Há testemunhos de sua coragem por toda parte; sopram pelas ruas e perambulam nas ondas e se enroscam nos espinheiros. Esse vestido é feito de alguns deles. Hamb kahle. Umkhonto1.
Falar sobre angústias nutridas no seu tecido social foi a saída honrosa encontrada pela África do Sul para construir o seu próprio modelo de democracia constitucional. O vestido acabou sendo colocado na Corte Constitucional como uma peça de arte valiosa. Lembrar inspirou orgulho e dignidade.
Assassinatos de mulheres têm sido lembrados em todo o mundo. É uma pauta global. Abordar a condição da mulher na sociedade atual empoderou cidadãs silenciadas. Tão logo a Rede Globo abriu o espaço, as mulheres falaram sobre impunidade. Talvez estivessem cansadas. Elas não queriam esquecer.
Aída foi tida como uma heroína. Educada por freiras espanholas católicas, ela recebeu, in memorian, uma especial homenagem. Madre Eusébia Garmêndia, ex-superiora do educandário onde estudou, enviou, em 8/12/1959, para Dona Jamila (sua mãe), de Barcelona, a correspondência abaixo:
Minha boa e querida Dona Jamila,
Meus parabéns!
Sim, meus parabéns, pois lhe coube a felicidade de ser mãe de uma mártir… disto eu não tenho a menor dúvida. Aída foi um modelo de educanda e continuará sendo um modelo verdadeiramente exemplar para as mocinhas do meu saudoso Brasil; este mundo miserável não merecia possuir uma criatura como ela, e Deus a levou, depois de demonstrar como ajuda, dando a coragem necessária até ao heroísmo para vencer as dificuldades e conseguir o cumprimento de nobres ideais. Sinto-me feliz de ter convivido com a sua boníssima filha e minha angelical e dedicada Aída Curi.
O abraço amigo de
Madre E. Garmêndia2.
“(…) este mundo miserável não merecia possuir uma criatura como ela”, está escrito. Mesmo a Madre, em sua discrição clerical, não suportou esquecer.
É preciso seguir lembrando para que possamos, enquanto membros de uma sociedade fraterna e solidária, tentar transformar a realidade. Pelo menos até o dia em que cartas sejam enviadas a mães para felicitá-las pela vida plena que suas meninas vivem, não borradas por lágrimas vertidas diante da penosa condição da mulher no Brasil e no mundo. Então teremos nossas heroínas vivas e ativas entre nós. Lembrar é a única saída. Por isso, jamais esqueceremos.
Não fosse toda a ornamentação feita sobre a expressão “direito ao esquecimento”, o leading case da jovem Aída, que será julgado pelo STF, seria enxergado segundo suas próprias características, quais sejam, uma baixa complexidade fática e certa simplicidade jurídica. Não se trata de um caso difícil.
A democracia constitucional brasileira consegue encontrar uma resposta com base em seu ordenamento jurídico. Não faltam dispositivos na Constituição e na legislação. A resposta adequada ao Tema 786 da repercussão geral, questionando a aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares (RE 1.010.606), declina o pedido dos autores. O ideal é esquecer o direito ao esquecimento.
*Saul Tourinho Leal é advogado em Brasília e doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP. Foi premiado com a bolsa Vice-Chancellor Fellowship pela Universidade de Pretória, para realizar estudos de pós-doutoramento junto ao ICLA, Institute of Comparative Law in Africa. Saul foi clerk do juiz Edwin Cameron, na Corte Constitucional sul-africana e presidiu o Comitê para Relações com a África do Sul, do Conselho Federal da OAB, que lhe outorgou o Troféu de Mérito da Advocacia Raymundo Faoro. É tradutor das obras do jurista Albie Sachs, indicado por Nelson Mandela para a Corte Constitucional.
__________
1 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 14.
2 Recanto das Letras.
FONTE: Migalhas