O pássaro da cidadania e a gaiola dos Conselhos Populares – o Decreto 8.243 e a sociedade civil
Carlos Ayres Britto*
Cidadania não é uma palavra qualquer. É uma figura de Direito. Uma superfigura de Direito, em verdade, pois embutida no rol dos “fundamentos” da República Federativa do Brasil. Está ali no inciso II do art. 1º da Constituição, garbosamente perfilada entre os “PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS” (Título I) do nosso Estado. Seu preciso significado é este: qualidade do cidadão. E cidadão é o habitante da cidade. Da “Cidade-Estado” que, na Grécia antiga, era chamada de pólis.
Pronto! O link vai tomando corpo: cidadania é qualidade do cidadão e cidadão é o habitante da cidade como espaço das relações primárias entre governantes e governados. Os governantes a representar a pessoa jurídica do Estado, os governados a “presentar” (Pontes de Miranda) a difusa ou não personalizada instância da sociedade civil. Cada um desses governados a encarnar a referida figura do cidadão. Mas não de um cidadão aquoso e, nessa medida, tão insípido, inodoro e incolor quanto a água potável que deu de faltar nos lares brasileiros. Ao contrário, cidadão como integrante orgânico ou militante ou engajado da sociedade civil perante o Estado. Envolvido com o dia-a-dia da população, portanto.
Daqui se deduz que o típico do cidadão é se interessar por tudo que é de todos. Sempre na perspectiva de servir ao todo social mesmo. O cidadão como símbolo da pessoa altruísta ou de alguém que veste a camisa da sociedade. Alguém que faz viagem de alma, e não viagem de ego. Tão socialmente participativo que no “Século de Péricles” (440-404 a.C.) se chegava a dizer: “sou livre porque participo”. E não “participo porque sou livre”, como atualmente se fala. O que pressupõe a mais desembaraçada busca de informações sobre os negócios públicos para que, num segundo momento, o cidadão já se posicione mais conscientemente como soberano (a soberania popular é o segundo fundamento da República, nos termos do inciso I do citado art. 1º e da cabeça do art. 14 da Magna Carta Federal). E é como soberano que ele vai protagonizar o voto direto e secreto, a iniciativa popular de lei, o plebiscito e o referendo (cabeça e incisos do mesmo art. 14).
É sob esse entendimento jurídico de cidadania que a nossa Constituição volta muitas vezes ao tema. E volta em sentido afirmativo ou de forte prestígio. Para fazer da cidadania um mecanismo de fiscalização, controle e acionamento do Poder. Um necessário instrumento de cobrança, denúncia, representação, queixa… e também de colaboração, claro! O cidadão a vitalizar o lema de que “o preço da liberdade é a eterna vigilância” (frase que ninguém sabe ao certo se de autoria de Thomas Jefferson ou Stuart Mill). Ele totalmente livre para se informar, vigiar e cuidar, seja por conta própria, seja requestando as autoridades. Mas sempre do lado de fora do Estado, porque ver o Estado a partir dele mesmo é ter a vista embaçada. O olhar anuviado de quem é observador e parte ao mesmo tempo. Não assim com o cidadão enquanto agente exógeno perante ele, Estado, de sorte a poder assumir-se como um pássaro solto na amplidão dos seus personalíssimos cuidados para com a pólis. “Livre, leve e solto” (Nelson Motta), inclusive para impedir que o atávico sono da nossa “pátria mãe tão distraída” venha a colocá-la no despenhadeiro das mais “tenebrosas transações” (Chico Buarque). Assim é que se explica, por ilustração, o seguinte catálogo de normas constitucionais: os incisos XXXIII e LXXIII do art. 5º, este a criar o mecanismo da “ação popular” e aquele a consagrar o direito de “receber dos órgãos públicos informações de (…) interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”; o § 3º do art. 37, remetendo à lei “as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”, de maneira a que sejam especialmente regulados “as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral” (inciso I), “o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo” (inciso II), assim como “a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública” (inciso III); o inciso IV do §2º do art. 58, que insere nas competências das Comissões Técnicas do Congresso Nacional e de suas Casas “receber petições, reclamações, representações ou queixas de qualquer pessoa contra atos ou omissões das autoridades ou entidades públicas”; o §2º do art. 74, que faz de qualquer cidadão “parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União”.
Bem, cheguei aonde queria chegar: o Decreto Executivo federal nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que me parece equivocado quanto aos conceitos constitucionais de cidadania e sociedade civil. E porque equivocado, traz uma e outra para dentro da União. Busca integrá-las à estrutura do Poder, para que elas atuem mais e mais ali na própria ossatura orgânico-administrativa da nossa pessoa federada central. Ora no interior desse ou daquele órgão, ora como parte dessa ou daquela comissão, ora na intimidade estrutural desse ou daquele conselho… e por aí vai. Mistura de papéis que mal disfarça duas coisas: a imperial liderança do Estado em face dela, sociedade civil, e o recolocar da altaneira figura do cidadão na subalterna condição de súdito. Isso porque assim postadas do lado de dentro dos aparelhos de Estado a sociedade civil e a cidadania não têm o que fazer senão ver quebrantadas ainda mais as suas forças e facilitado o que em tais aparelhos é histórico lugar-comum: botar as mangas de fora. Esse mesmo Estado que, no Brasil, chegou antes da sociedade e até hoje não a reconhece como a única razão de ser da sua jurídica existência. Estado que demora demais a entender que os súditos da sepultada monarquia têm o direito de se transformar nos cidadãos da República finalmente partejada. Temo pelo pássaro da cidadania a trocar o voo pelo saltitar na gaiola dos conselhos populares ou coisa que o valha.
Artigo originalmente publicado com o título “O Decreto 8.243 e a sociedade civil” no Estadão do dia 22 de fevereiro de 2015.
*Carlos Ayres Britto, ex-presidente do TSE e do STF, é mestre e doutor em Direito Constitucional pela PUC de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas