*Saul Tourinho Leal
“O que eu vou fazer agora?”, gritou Mohamed Bouazizi para a policial Fayda Hamdi, em Sidi Bouzid, na Tunísia. O jovem de 26 anos teve seus produtos e balança apreendidos pela falta de autorização para vender frutas na feira. A policial estapeou-lhe o rosto. Bouazizi se queixou para as autoridades. “Se vocês não fizerem nada, eu vou atear fogo em mim”.
Com a inércia, ele cumpriu a promessa. Dia 4 de janeiro de 2011, 18 dias depois, ele morreu no Hospital Militar de Ben Arous. Foi o estopim da Primavera Árabe. Tudo pela brutalidade do Estado com trabalhadores informais.
Esse enredo parece universal. No Brasil, na ressaca de uma crise que penalizou inocentes, os pequenos requerem justiça tributária. Têm nas mãos a Constituição. O veto desconsiderou que a Constituição traz ação afirmativa com tratamento favorecido às micro e pequenas empresas
Em setembro de 2017, a Receita Federal notificou 556.128 empresas optantes pelo Simples Nacional com dívidas tributárias. Se não se regularizarem, elas serão excluídas do regime a partir de janeiro de 2018. Mês seguinte, foi aprovado o Programa Especial de Regularização Tributária (Pert), pela Lei nº 13.496. Garantiu-se às médias e grandes empresas condições para a renegociação de seus débitos junto ao governo federal em até 180 meses, redução de juros de até 90% e de até 70% das multas. A Frente Parlamentar Mista da Micro e Pequena Empresa incluiu os micro e pequenos no programa, mas o Executivo vetou o Pert do Simples Nacional (Pert dos Pequenos).
O veto desconsiderou que a Constituição traz uma ação afirmativa com tratamento favorecido e juridicamente diferenciado às micro e pequenas empresas. O art. 179 diz: “a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei”.
O art. 170, IX, tem como princípio da ordem econômica o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país. Segundo o art. 146, III, “d”: Cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do ICMS (art. 155, II), das contribuições sociais previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239 (PIS/Pasep).
Esses comandos fizeram o STF definir que, dentre as medidas do Simples Nacional “está a elaboração de regime tributário diferenciado, que tome por premissa a circunstância de as empresas com menor receita não terem potencial competitivo tão desenvolvido como as empresas de maior porte” (ADI 4033, DJe 7/2/2011). Logo, o Pert dos Pequenos simplesmente concretiza a isonomia tributária (art. 150, II, da Constituição). O Congresso, ao colmatar uma lacuna, bem tentou evitar uma grande corrida judicial futura que ocorrerá caso o veto seja mantido.
E mais. A Lei Complementar 123/2016 não requer manifestação do Confaz quanto a qualquer aspecto do Simples Nacional.
O Pert não trata de isenção, incentivo ou benefício fiscal relativos ao ICMS, mas de parcelamento tributário, com redução de multa e juros. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), “o fomento da micro e da pequena empresa foi elevado à condição de princípio constitucional, de modo a orientar todos os entes federados a conferir tratamento favorecido aos empreendedores que contam com menos recursos para fazer frente à concorrência”. Assim, “a literalidade da complexa legislação tributária deve ceder à interpretação mais adequada e harmônica com a finalidade de assegurar equivalência de condições para as empresas de menor porte” (ADI 4033, DJe 7/2/2011).
Também descabe falar de “renúncia de receita”. A esse respeito, anotou o Min. Dias Toffoli: “Embora o Simples Nacional seja um modelo tributário opcional e favorecido, guardo reservas quanto ao entendimento manifesto em parte da doutrina e da jurisprudência de que o regime é um mero benefício fiscal. Em verdade, como sobressai da lei complementar, trata-se de um microssistema tributário próprio, aplicável a apenas alguns contribuintes (microempresas e empresas de pequeno porte), inserindo-se no contexto maior das políticas públicas concretizadoras dos princípios e dos objetivos da ordem econômica” (RE 627.543, Tema 363, DJe29/10/2014).
Exercendo, os deputados, o dever de manter, defender e cumprir a Constituição (art. 4º, § 3º, do Regimento da Câmara); e, os senadores, o de guardá-la (art. 4º, § 2º, do Regimento do Senado), é um imperativo constitucional desses guardiões da Constituição rejeitar o veto ao Pert dos Pequenos. Isso, não por conveniência política, mas por ser, esse, um dever constitucional a eles outorgado.
*Saul Tourinho Leal é doutor em direito constitucional, integra Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.
FONTE: Valor Econômico