CARLOS AYRES BRITTO*
Não é no plano das normas que se assenta a feição imperial do nosso presidencialismo
Uma das mais importantes dicotomias da vida é a formada pelo mundo das normas e pelo mundo dos fatos. Normas que dispõem sobre fatos, fatos que ora se dão conforme sua previsão normativa, ora não. As normas como abstração ou vida pensada, os fatos como concreção ou vida vivida. Para os propósitos do presente artigo, normas jurídicas de um lado e, de outro, fatos que se põem como hipóteses de incidência delas. Fatos por ela regulados, portanto. Por ilustração, a norma penal que proíbe o fato do homicídio, a norma civil que permite o fato do casamento.
Muito bem. Ao menos no campo do Direito Constitucional brasileiro, há uma tradição ruinzinha à beça. A que põe os fatos acima das respectivas normas. Elas a perder de goleada para eles. Isto no sentido de que, se os fatos não se passam de acordo com o querer da sua moldura normativa, pior para ela. Eles vão prosseguir destorcidos e o seu molde normativo, ignorado. Ou, então, substituído por outro. Quando, na verdade, o problema de maior gravidade não costuma residir no molde, mas na aceitação do desvirtuamento dos fatos por ele regrados. Exemplos? Número de partidos políticos e provisão de recursos para a respectiva mantença, registro de candidaturas políticas, financiamento de campanhas eleitorais, formação de base parlamentar para o que se tem chamado de presidencialismo de coalizão, nomeação para cargos em comissão, princípios da publicidade e da impessoalidade, dever da probidade administrativa. As chamadas mazelas de um sistema presidencial que, em rigor, somente é imperial no plano dos fatos. Não propriamente no plano das normas.
Com efeito, um olhar mais atento para a Constituição evitaria tantas emendas a ela (mais de nove dezenas em apenas 27 anos), de parelha com leis também produzidas com fecundidade de hamster (cuja fêmea ovula a cada nove dias). Emendas e leis referentes a fatos que já tinham no sistema de normas então em vigor um tratamento de boa qualidade democrático-republicana. Além de racional e justo, em linhas gerais. Bastando lembrar coisas assim instantaneamente condutoras de seu entendimento lógico: “partido” é parte, parcela, fração de opinião ideológica de um povo. Logo, sua criação deve corresponder a uma destacada concepção quanto ao melhor modo de estruturar o governo da pólis. Pelo que sua mantença e seu crescimento devem se dar, substancialmente, pelo aporte de recursos dos seus próprios simpatizantes, filiados, dirigentes e candidatos eventualmente eleitos. Nada a ver com a gestação de siglas que, ideologicamente nulas, apenas se destinam a abocanhar nacos do Fundo Partidário e alugar seu tempo de rádio e televisão. Ou com a estratosférica fixação nominal desse mesmo fundo, ainda que legislativamente feita.
Nessa pegada constitucional, o vocábulo “candidato” significa, tecnicamente, cândido. Puro ou limpo, eticamente. Da mesma forma que o termo “candidatura” traduz a ideia de candura ou pureza ou limpeza ética. Nada compatível com pessoas de avultado passivo processual-penal, ou em face da chamada “lei de improbidade administrativa”. Daí por que a Constituição também fala de “vida pregressa” de tais candidatos. Dando-se que vida pregressa não é vida futura. É vida passada. Propósito de qualificar a representação política do povo, que responde, ainda na Constituição, pelo chega pra lá no poder econômico em tema de financiamento de campanhas eleitorais.
Paro por aqui no que toca ao sentido técnico de vocábulos e fraseados da Constituição. Termos e expressões que, se interpretados com rigor científico, “enquadrariam” os fatos constitutivos das principais mazelas políticas e até institucionais do cotidiano brasileiro. Limito-me, para encerrar estas reflexões, a falar do sistema presidencial do País. Presidencialismo destas bandas de cá, antecipei, somente imperial no plano dos fatos. Não no plano normativo-constitucional. É que, para cada tipologia de competência presidencial, a Constituição cerca o respectivo exercício de eficazes antídotos. Assim na chefia de Estado como de governo e até da administração pública. Vou às indicações normativas, a título exemplificativo.
Se o presidente da República é quem protagoniza as relações internacionais do Brasil, tem de submeter os respectivos atos a referendo do Congresso Nacional (incisos VIII do artigo 84 e I do artigo 49). Se edita medidas provisórias, quem dá a última palavra sobre elas é, de novo, o Parlamento brasileiro (caput do artigo 62). Se nomeia dignitários da envergadura de um ministro do Supremo Tribunal Federal, de um procurador-geral da República, de um ministro de tribunal superior e do Tribunal de Contas da União (TCU), tudo passa pelo crivo do Senado Federal (inciso III do artigo 52). Se dirige superiormente a administração pública federal, nela embutidas as empresas estatais, é fiscalizado e controlado por ambas as Casas do Congresso, com o auxílio do TCU, o que ainda alcança o julgamento de suas contas anuais (incisos IX e X do mesmo artigo 49). Se pode iniciar o processo de emenda à Constituição, fica privado do poder de sanção e veto (§ 3.º do artigo 60). Se pode prover cargos em comissão, tem de respeitar os limites mínimos que a lei fixar para os servidores de carreira (inciso V do artigo 37). Sem falar que é obrigado a oficiar debaixo dos explícitos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (artigo 37, cabeça).
Ora, bem, levando ainda em conta que a ordem constitucional brasileira turbina a cidadania (inciso II do artigo 1.º), plenifica a liberdade de imprensa (artigo 220), institui o mecanismo de impeachment (caput do artigo 85) e faz do Poder Judiciário o ponto de unidade dos outros dois Poderes da União, onde a feição monárquica do presidencialismo brasileiro? Nos fatos. Nos fatos, conforme esta sentença oracular de Carlos Drummond de Andrade: “Caiu a corte; não os cortesãos”.
* EX-PRESIDENTE DO STF
FONTE DA NOTÍCIA: Estadão