Poder Judiciário: ativismo versus proatividade
Carlos Ayres Britto
A vida resplende mesmo é nos instantes de sua unidade. Se é feita de polos contrapostos (não há nada que não tenha o seu oposto), termina por colocá-los em conciliado funcionamento para o alcance de uma terceira e superlativa unidade. Por ilustração, óvulo e espermatozoide se unificam na mais qualificada estrutura celular do embrião. As duas margens de um rio buscam na corrente desse mesmo rio o seu ponto de otimizado diálogo. As asas de um mesmo pássaro se colocam em convergente funcionalidade para produzir o milagre do voo. O sentimento e o pensamento humano bem podem celebrar um casamento por amor que vai redundar no partejamento da consciência. Verdadeiro topo de cada um de nós, a nos possibilitar ver as coisas com mais clareza, lonjura, profundidade e largueza.
Pois bem, o Direito aprecia esse modo instigante de ser da eterna moça que é a vida. Basta lembrar que a dicotomia do Direito Público e do Direito Privado vai encontrar na Constituição a sua mais perfeita síntese. A população como categoria demográfico-econômica e o povo como categoria jurídico-político têm a superá-los a nação como realidade exclusivamente política; ou seja, a nação como fonte única da Constituição originária, porque só ela é detentora do Poder Constituinte. O princípio da democracia liberal e o da democracia social a afunilarem para o princípio da democracia fraternal ou solidária. O indivíduo e a sociedade a ter na comunidade (de comum unidade) a melhor chance de conciliação entre os respectivos interesses e valores. Interesses dos indivíduos, valores da sociedade. E vem o que mais interessa: a dualidade Poder Legislativo/Poder Executivo a ter nesse ponto de unidade que é o Poder Judiciário a garantia de que as leis serão produzidas de acordo com a Constituição e os decretos guardarão conformidade tanto com as leis quanto com a Constituição mesma. Garantia, ainda, de que os espaços de competência de um não serão usurpados pelo outro, embora esse papel de garante ou fiador termine por habilitar, na prática, o Judiciário a ditar o seu próprio espaço de competência.
Numa frase, assim como não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, não se pode impedir o Judiciário de falar por último. É o Direito a coreografar a dança da sua própria unidade, por imitação à vida. Empoderamento excessivo? Não! A resposta é negativa porque a Constituição mesma avia um receituário de contenção do Poder Judiciário brasileiro nos quadrantes de sua função de julgar. Não de legislar nem de se substituir ao Poder Executivo. Apresta um eficaz estoque de antídotos contra descomedimentos funcionais, de que servem de amostra: o julgar segundo pautas processuais legalmente estabelecidas, incorporantes, além do mais, das garantias do contraditório e da ampla defesa; a publicidade das sessões de julgamento e das decisões proferidas; o dever da fundamentação de todo e qualquer ato decisório, sob pena de nulidade; a prestação jurisdicional concomitante ao desempenho, por outros profissionais do Direito, de funções essenciais à jurisdição mesma (falo dos membros do Ministério Público, da advocacia pública e privada e da Defensoria Pública); a submissão ao mais ampliado sistema recursal; a permanente vigília correicional do Conselho Nacional de Justiça, com ênfase no controle da atuação administrativa e financeira de órgãos e agentes de qualquer escalão judiciário (tirante o STF e seus ministros).
Antídotos que tais, já se vê, são instituídos para salvar os magistrados de si mesmos. De seu eventual impulso para o voluntarismo, prepotência, arrogância, pose, espírito de corpo, subserviência, nepotismo, desatualização cognitiva, morosidade, inassiduidade e, no limite, venalidade (crime de dar engulhos no próprio Lúcifer). Antídotos ou anteparos que, se bem ministrados, ainda ajudam à conscientização dos próprios julgadores de que eles não podem incidir no que se tem chamado de “ativismo judicial”. Que se traduz em antijurídica investidura do julgador na função de fonte das próprias leis. Rendido à tentação de vê-las como servientes do seu querer subjetivo, e não como veículos de normas que se dotam de vontade própria. Que é uma vontade objetiva delas, e não uma vontade subjetiva deles.
Mas não se pode confundir ativismo judicial com proatividade interpretativa. O ativismo é proibido, a proatividade é dever. Dever de desentranhar dos dispositivos jurídicos, isoladamente e também imersos no sistema de que eles façam parte, todas as respectivas angulações ou propriedades normativas. Dever de não ficar aquém do potencial normativo ali engastado. Dever, enfim, de imprimir aos enunciados jurídicos todos os ganhos de funcionalidade sistêmica a que eles se predisponham. Inclusive e sobretudo diante de comandos ativistas por si mesmos. Ativismo, óbvio, não como subjetiva postura do intérprete, porém como objetivo traço de preceitos que tudo investem na sua própria força normativa. Sem nenhuma dependência de legislação intercalar, portanto. Como faz a Constituição, por amostragem, nos parágrafos 1.º e 2.º do seu artigo 5.º: o primeiro, a dizer que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”; o segundo, a ordenar que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados (…)”.
Concluo, citando opinião atribuída a Michelangelo: “As estátuas não se fazem. Elas já estão feitas no mármore bruto. Eu apenas removo os excessos”. Pois assim é que deve ser o atuar do juiz: apenas desvelar (de tirar os véus) a inteira compostura das normas jurídicas. Desvelar argumentativamente normas já abrigadas no objeto de sua interpretação. Mas fazê-lo com todo o empenho, paciência, imparcialidade, independência, sentimento, pensamento e consciência, pois a norma só se dá por inteiro a quem por inteiro se dá a ela.
* Versão publicada no jornal Estadão do dia 24 de maio de 2015.