Carlos Ayres Britto
A sentença oracular acima é de Mouna Moura, psicóloga e espiritualista de Brasília. Se bem conheço a dona da frase, ela quis vocalizar coisas assim: o meu ser infragmentado somente irrompe no aqui e no agora; é quando enxoto de mim o passado e o futuro que me ombreio à própria vida, que também só acontece no esplendoroso intervalo entre o que já passou e o que ainda não veio; viver por completo o presente é fazer do breve o intenso, único modo de fazer da eternidade uma experiência; intensificar a vida é fisgar e deglutir cada instante como, de fato, cada instante é: uma imensidão de possibilidades. Otimizado ponto de encontro entre o sucessivo e o insucessivo, que não é senão o ponto de unidade do fragmentado e do infragmentado. Percepção que levou Parmênides (530-460 a.C.) a pronunciar estas palavras sobre a inteireza da vida: “Nunca foi nem será, porque simplesmente é”. Ou, quem sabe, Vinicius de Moraes a ensinar que “a vida só se dá pra quem se deu”. A vida a somente se dar por inteiro a quem por inteiro se dá a ela, que já é um se dar na plenitude do aqui e do agora.
Pois bem, essa predisposição para entrar de cabeça nos domínios do aqui e do agora é o que está a acontecer com a sociedade civil brasileira. Ela a compreender que somente é quando está na posse do seu inteiro e renovado ser. Do seu DNA, para recorrer à teoria de Paul Johnson acerca da estruturação histórica de cada povo. Que já é um código genético de completa sintonia coletiva brasileira com o que há de mais civilizadamente atual. Mais presente. Mais pulsante. Vale dizer, um código genético eminentemente cívico ou de quem se dá ao respeito de participar da arquitetura do seu próprio destino. O renovado DNA de um povo finalmente identificado com a democracia mais intrinsecamente meritória, que é a democracia de três vértices: a liberal, a social e a fraternal. Uma democracia pra valer, porque voltada para a definitiva conciliação entre poder e pudor; capital e trabalho; desenvolvimento e meio ambiente ecologicamente equilibrado; legitimidade como pré-requisito de investidura nos cargos políticos e legitimidade como requisito de desempenho por todo o mandato; pluralismo e visão individual das coisas; Direito Penal eficaz e devido processo legal, especialmente quanto às garantias fundamentais do contraditório e da ampla defesa. Tudo sob a premissa fundamental de que não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Poder Judiciário de falar por último.
Esse reprogramado DNA brasileiro encarna o quê? Uma nova quadra histórica! Uma inflexão institucional do mais largo espectro! A concreta guinada de 180 graus pós-Constituição de 1988. Por isso que a sociedade civil brasileira está a se ombrear e até a se impor ao Estado. 515 anos depois do descobrimento do País, relembre-se. Ela, sociedade civil, a se livrar das sequelas da anterioridade do Estado como ocupante do território brasileiro. A se assumir como titular dos princípios que se põem como deveres jurídicos do Estado mesmo. Princípios que são supernormas de Direito, dentre eles o da “moralidade” administrativa (cabeça do artigo constitucional de n.º 37). Também assim o princípio da “cidadania”, sem cujo exercício o princípio igualmente fundamental da “soberania” não passaria de uma bolha normativa (incisos I e II, art. 1.º). Mera proclamação retórica. Afinal, como decidir soberanamente sobre as coisas sem o pleno conhecimento que delas possibilita a ativação da cidadania? Como votar conscientemente sem a plena ciência da vida pregressa dos candidatos, se o vocábulo “candidato” significa precisamente “cândido”, puro, limpo, em sentido moral? E “candidatura” não é senão “candura”, ou limpeza, ou pureza igualmente ética?
Eis o quadro atual da vida brasileira. Um panorama que tenho como de descoberta e assunção de uma genuína identidade nacional. Uma consciente e decidida autoidentificação que se põe como a própria condição da exigência do respeito da sociedade por si própria, antes de tudo. A implicar um antagonismo inicial com o Estado, é certo, porque ela se deu conta de que as instituições estatais de governo dão mostras de enveredar por um caminho tal de disfunção ética e falta de competência funcional que já resvala, danosamente, para os domínios da economia do País. Ali onde o bolso é mais assediado pelo estômago e por outras exigências de uma vida humana material e psicologicamente segura. Ali onde o sapato mais aperta e os calos costumam ser insuportavelmente dolorosos. Com a novidade de que já não servem de anestésico as palavras oficiais apenas da boca pra fora. Mas também, reconheça-se, um espaço de antagonismo passível de superação pela mais frutuosa das parcerias público-privadas, que é a parceria do Estado com o conjunto da sociedade a que ele deve servir com toda a competência, devoção, honestidade e transparência. Essa transparência que Norberto Bobbio tinha como elemento conceitual da própria democracia, a ponto de afirmar que ela, democracia, “é o governo do poder público, em público”; isto é, com toda a visibilidade ou desnudadamente.
Enfim, que os dois Poderes elementarmente políticos do Estado, especialmente o chefiado pela atual presidente da República, tenham lucidez para entender que a sociedade civil já está bem adiante deles no frescor das ideias e na depuração dos costumes. Ela é que prossegue a rezar pela cartilha da Constituição e por isso mesmo tem todo o direito de ser ouvida. Ser ouvida, inclusive, quanto a duas coisas: 1) ao desabafo de que já transbordou o copo da sua paciência com esse fundo de quintal que é a transformação de um presidencialismo de coalizão programática em presidencialismo de cooptação argentária; e 2) à advertência de que, bem conceituou Einstein, “loucura é esperar resultados diferentes fazendo-se sempre as mesmas coisas”. Não equivale à admoestação do “reinventa-te ou te devoro”? A vida, com sotaque alemão, a enfiar 7 x 1 num conhecido e defasado técnico de futebol?
Fonte: O Estado de S. Paulo