Viagem sem volta
Carlos Ayres Britto
A lição vem de Einstein: “A mente que se abre para uma nova ideia não retorna ao tamanho primitivo”. A significar – penso – que um entendimento mais aberto ou arejado das coisas opera no indivíduo uma transformação. Mais que uma simples mudança de ordem subjetiva, uma conversão. O alcance de um mais elevado patamar de compostura humana ou de um superlativo modo de ser. Muito mais que eventual modificação de comportamento, o salto de uma visão de mundo para outra completamente distinta. Nova e superior cosmovisão, portanto. Algo assim como Shakespeare a dizer que “Transformação é uma porta que se abre por dentro”. Uma porta que se abre para possibilitar até mesmo o visual do absoluto. Que já é o vislumbre do ponto de unidade entre o infinito e o eterno. Num grau de impactação tão forte que leva a pessoa natural a empreender uma viagem de qualidade que já não comporta retorno.
Reitero, porém, que esse clarão de consciência opera no plano individual. Por isso que passível de numerosas causas. Umas internas ao ser humano, outras externas, além do que insuscetíveis de hierarquização. Seja como for, são fontes de transmutação subjetiva que bem correspondem à ideia de salto quântico. Tal a rapidez e a radicalidade com que pode ocorrer a troca de um estado de ser para outro. Feito ondas a irromper no lugar de partículas da matéria subatômica dos prótons, elétrons e nêutrons. Eterno reino da subitaneidade, portanto. Ou do não se dar à fraqueza do pré-aviso em absolutamente nada.
Pois bem, não é assim no plano coletivo. O corpo social é muito mais pesado que o corpo individual – pondero – para experimentar saltos quânticos. Não é pelo princípio da subitaneidade que se dilata a consciência das sociedades humanas. Elas somente se abrem para o fenômeno da evolução; não da transformação. Dando-se que evolução é algo processual, gradativo, paulatino. Implica metamorfose, sim, mas daquele tipo experimentado pela rastejante lagarta, que passa pelas necessárias fases do casulo e da crisálida, antes da chegada ao estado de borboleta. Noutro dizer, evolução coletiva é sempre embate de culturas, a mais velha a oferecer todo tipo de resistência à mais nova. A velha e carcomida cultura ou ordem social antiga a não querer jamais abrir mão dos seus privilégios. Espécie de luta de boxe em que a vitória da nova e mais qualificada ordem é certa, mas sempre por pontos. Nunca por nocaute.
O bom desse meu entendimento das coisas é que, no Brasil, há quase trinta e um anos não cessa de reluzir no horizonte da consciência coletiva o astro-rei de nome “democracia”. Uma democracia republicano-federativa que se faz, de ponta-a-ponta da Constituição de 1988, o princípio jurídico-político de maior hierarquia. Aquele princípio que, em todo o mundo civilizado, é sinônimo de humanismo. O único princípio capaz de conciliar centralidade individual e coesão social. Embora ciente de que não tem como triunfar em um simples estalar de dedos ou num piscar de olhos. A sociedade não troca de cultura como quem troca de camisa, insisto na comparação com o indivíduo. Mas é perceptível que a nova ordem democrática brasileira mais e mais municia de informações os brasileiros e estrangeiros residentes no País. Mais e mais expande as fronteiras da cidadania para dotá-la de espírito crítico. Para fazer distinções que também habilitam o homem comum do povo a exigir de todos os agentes estatais, especialmente os governantes, que façam o jogo da Constituição. O jogo da verdade constitucional. Por que assim?
Bem, é que fazer o jogo da verdade constitucional corresponde à abertura da coletividade para idéias que, no referido âmbito do indivíduo, promovem uma viagem de qualidade sem volta. Listo algumas, que penso rimadas com os respectivos princípios e regras: a) a Constituição governa permanentemente quem governa transitoriamente; b) o imperioso combate à impunidade tributária e penal propriamente dita começa com a rigorosa observância do enunciado republicano de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”; c) as instituições públicas se dividem em instituições que governam (Executivo e Legislativo) e instituições que não governam, mas impedem o desgoverno (Polícia, Ministério Público, Tribunais de Contas, Poder Judiciário); d) há dois tipos de legitimidade política: a legitimidade no plano da investidura (legitimidade eletiva) e legitimidade no plano do exercício, esta última a ser aferida por modo permanente; e) permitir que empresas financiem campanha eleitoral é possibilitar a quem não possui título eleitoral eleger, de fato, os candidatos a cargo político; f) não se pode impedir a Imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Poder Judiciário de falar por último; g) os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência são deveres estatais a que correspondem direitos da população.
Encerro. Isto para dizer que o último dos citados princípios – o da eficiência – é que também por último passou a ser internalizado como direito de todos. Mas uma internalização que, por igual, não admite retrocesso. Afinal, trata-se da ideia-força de que o povo tem todo direito a uma Administração e a um Governo de qualidade. De excelência até. Governo e Administração tocados por agentes tecnicamente capazes. Competentes. Preparados. Vocacionados para a condução da res… pública. Mais ainda, um tipo de preparo ou competência ou capacidade ou vocação que passa pela criatividade como ferramenta de superação de qualquer tipo de crise. Uma especial aptidão para pensar fora da caixa, então, pois “Loucura é querer resultados diferentes fazendo-se sempre a mesma coisa” (Albert Einstein, outra vez). É a comentada legitimidade pelo exercício, exigente de uma ininterrupta reinvenção que tem tudo a ver com o dito popular de que “quem não for competente que não se estabeleça”.
- Artigo publicado no Estadão do dia 28/02/2016.
- Fonte: Estadão