Carlos Ayres Britto
O dito popular de que a vida do ser humano começa aos 40 anos de idade não me parece algo meramente cerebrino. Não o tenho como uma proposição que se inicia e termina tão somente no intelecto. Descolada da realidade, portanto. Não! Penso tratar-se de uma observação empírica. A observação de que, nesse patamar das quatro décadas de vida, a pessoa humana passa a dar mostras de uma inflexão de qualidade em sua biografia. Opina com mais consistência sobre si mesma e o seu entorno existencial, tanto quanto assume as posturas intrinsecamente meritórias da sensatez, serenidade, ponderação, responsabilidade, abertura para o coletivo. Como que fechando, ainda que inconscientemente, as cortinas dos arroubos da mocidade e pondo os pés na soleira da maturidade. O que passa a traduzir o ganho de condições para uma otimizada parceria entre quociente emocional e quociente intelectual.
Por que assim? Bem, já ouvi muitas explicações para o fenômeno. A minha tem por base de inspiração o místico indiano que se tornou conhecido e admirado com o pseudônimo de Osho. Uma explicação que passei a desdobrar por conta própria e me permito resumir por esta forma: o alcance dos 40 anos de vida já se traduz em experiência o bastante para a percepção de distinções mais sutis sobre o que se passa do lado de dentro e também do lado de fora da gente mesmo.
Uma dessas percepções mais refinadas é a de que tem prazo de validade a nossa casual condição de filho(a) de um casamento que nos foi exterior: o dos nossos pais. Casamento que responde pela originária trindade do pai, da mãe e do(a) filho(a), justamente. E se tem prazo de validade essa casual situação subjetiva de fruto de um casamento para o qual não fomos convidados (ninguém pediu para nascer), é porque uma nova trindade bate à nossa porta. A nova trindade do pai, da mãe e do(a) filho(a) de nós mesmos. Vale dizer, o indivíduo a celebrar um heterodoxo casamento interior, porquanto consigo mesmo. Única forma de a pessoa humana ter a chance de ascender a um tipo de unidade trina, ou de trindade una, porque todo indivíduo bem pode se tornar pai, mãe e filho(a) de si próprio.
Dá para concluir, então, que a vida fica mais fácil de levar para quem resume em si três pessoas. A tal unidade trina ou a trindade una. A significar o indivíduo a se sentir mais confiante em sua própria companhia, mesmo que não saiba por quê. O caso é de feeling, e não de reflexão. O sujeito a sentir que passou à superlativa condição de dizer: “Agora eu sou mais eu porque passei a dialogar com três pessoas que só querem o meu bem”. Sem que essa maior confiança em si mesmo tenha que ver com o “Narciso acha feio o que não é espelho”, de que fala Caetano Veloso na genial composição que é a música Sampa. Bem diferente, cuida-se de um tipo de confiança que impulsiona o indivíduo para aquele centro de si mesmo em que alegre e orgulhosamente convivem as mencionadas virtudes da serenidade, sensatez, ponderação, responsabilidade e abertura para o coletivo. Espécie de cadinho onde se tempera o aço inoxidável de um tipo de coragem que é tão destemor quanto criatividade para o enfrentamento de toda e qualquer crise de existência.
Esse verdadeiro link entre o maior tempo individual de pé-na-estrada e o ganho de maturidade do viajante bem se retrata no Direito de cada povo. A nossa Constituição, por exemplo, exige a idade mínima de 35 anos para o provimento dos cargos de cujo desempenho ela mais depende para se tornar “um corpo vivo” (ministro Marco Aurélio). Um efetivo instrumento de refundação do País em termos de democracia liberal, social e solidária ou fraternal. Caso, entre outros, dos cargos de presidente da República, senador, ministro do Supremo Tribunal Federal, procurador-geral da República, ministro do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal de Contas da União. Saltando à evidência que sobre os respectivos ocupantes recai uma expectativa social maior de conduta funcional compatível com o sobredito link. Uma expectativa social maior que traz consigo uma tolerância menor para quem a frustra. Para quem não esteja à altura da sua mais grave investidura em função estatal de primeiríssimo escalão. Afinal, conforme ressai de outro sábio ditado popular, “quem não pode com o pote que não pegue na rodilha”.
Bem, todo esse arrazoado em torno de uma idade que se preste como símbolo de maturidade é tão só no plano individual. Se algum préstimo ele tem, fica adstrito ao mourejar de cada pessoa nesta vida de “aquém-túmulo” (Guimarães Rosa). Não sei de estudo que mereça crédito quanto a um paradigmático tempo de maturidade de um povo. De um país. De uma nação. O que sei é de generalizada sabença, mas nunca é demasiado repetir. Amadurece mais rápido, com maior consistência e menores riscos de retrocesso um povo que se estrutura nos marcos de uma Constituição que mereça o triplo qualificativo de democrática: democrática quanto à formação dos seus elaboradores; democrática quanto ao seu processo de elaboração; democrática quanto ao seu conteúdo.
Em linhas gerais, a nossa preenche as três exigências. Está próxima dos seus 30 anos. Já nos amadureceu o suficiente para a percepção de tão sutis quanto fundamentais distinções. Cito algumas: 1) A legitimidade no plano da investidura dos cargos públicos é necessária, mas não suficiente, porque tem de se fazer acompanhar da legitimidade no plano do exercício; 2) o financiamento empresarial de campanhas eleitorais tipifica a mais temerária das parcerias público-privadas (a do poder econômico e do poder político), por se traduzir na mais forte ameaça à conquista da civilizada conciliação entre poder e pudor; e 3) país que se dá ao respeito jurídico é o que assegura à imprensa o direito de falar primeiro sobre as coisas e reconhece ao Judiciário o poder de falar por último.
Artigo publicado no Estadão de 24 Janeiro 2016.
Fonte: O Estado de S. Paulo