Saul Tourinho Leal*
O passado ajuda a sentir o valor de conquistas históricas granjeadas por gerações de coragem que entregaram suas vidas à vindicação por direitos e à luta por justiça.
Em 1215, o rei João Sem Terra fez constar na Magna Carta que todos os tributos necessitariam de uma espécie de prévia previsão legal. Os contribuintes deixariam de ser inteiramente guiados pelos caprichos do monarca e ganhariam alguma segurança jurídica.
O mundo jamais foi o mesmo desde então. A conquista foi aperfeiçoada nos Estados Unidos, com a Constituição de 1787, e na França, com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e a Constituição de 1791.
No Brasil, a Constituição Imperial de 1824 previu, no art. 36, I, ser “privativa da Câmara dos Deputados a iniciativa sobre Impostos”. Nenhuma das nossas Constituições – e não são poucas – deixou de contemplar a legalidade tributária estrita.
A Constituição de 1988 veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça (art. 150, I), sendo preciso observar a tipicidade pela qual o intérprete não pode criar hipóteses de tributação não previstas nem ampliar as já existentes. É o que diz o art. 108, §1º do Código Tributário Nacional: “o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributos não previsto em lei”.
Apesar dessa robusta proteção, sexta-feira passada, 19/6, foi apresentada no Supremo Tribunal Federal a posição da ministra Rosa Weber, relatora do Tema nº 296 da repercussão geral, que discute o caráter taxativo da lista de serviços de que trata o art. 156, III, da Constituição, que outorga competência aos Municípios para instituir imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), definidos em lei complementar.
A parte final da tese proposta flexibiliza os princípios da legalidade e tipicidade tributárias. Eis a tese: “É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o art. 156, III, da Constituição Federal, ‘admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva’”.
Se for possível interpretação extensiva em matéria tributária para colmatar a vagueza de expressões como “congêneres”, “outros” e “assemelhados”, empoderando as Administrações Tributárias com asas à interpretação, qual eficácia restará à legalidade e tipicidade tributárias? Se pode o Fisco interpretativamente fazer nascer atividades tributáveis excluídas pelo legislador, mesmo que a partir de algum tronco comum, por qual razão irá a sociedade civil se empenhar em, no Poder Legislativo, atualizar da melhor forma a lista de serviços sujeitos ao ISS?
O Município de São Paulo, por exemplo, exigia ISS pelos serviços de “flat” numa interpretação extensiva do item de serviço que trata de “hospedagem em hotéis, motéis, pensões e ‘congêneres’” (item 99). Como havia o “e congêneres”, mesmo que os “flats” não constassem na lei, o Fisco cobrava o imposto ao fundamento de era um serviço congênere de hotel, quando na verdade são coisas bem distintas.
Percebendo a inconstitucionalidade da postura, em 2003 a lei complementar nº 116 incluiu expressamente os flats como serviços, abrindo espaço para a edição da Lei municipal nº 13.701. Tributar as pessoas reclama assentimento coletivo derivado da lei.
No STF, havia uma posição do ministro Carlos Velloso (RE nº 361.829, 2ª Turma), no sentido de que apesar de ser taxativa a lista de serviços do aludido tributo seria possível uma interpretação de seus tópicos. Mas ela foi superada no RE nº 446.003, no qual a 2ª Turma, por unanimidade, fixou que a lista de serviços do ISS é, sem restrições, taxativa, não comportando interpretações alheias à estrita literalidade da lei.
Recentemente, o pleno da Suprema Corte, pela relatoria do ministro Gilmar Mendes, rememorou que “aquilo que não consta da lista foi excluído pelo legislador complementar do conceito de serviço para fins de incidência de ISS, ainda que pudesse, de fato, ser tomado como serviço noutro contexto”.
As palavras finais do ministro são definitivas: “a mera inclusão na lista não transforma em ‘serviço’ a atividade que, pela sua natureza, tenha outra qualificação jurídica, mas a falta, a não previsão, na linha da jurisprudência deste Tribunal, afasta a incidência do imposto” (RE nº 603.136, Tema 300).
O julgamento do Tema nº 296 segue até sexta, 26/6. Votarão ainda os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Dias Toffoli.
Num momento de busca desenfreada por recursos, a tese proposta pela relatora resultará no uso abusivo, pelo Legislativo, de expressões vagas a autorizar o Fisco a exigir o ISS de atividades não constantes da lista anexa à lei complementar.
Por isso, é preciso reconhecer o caráter taxativo da lista, impedindo-se que seja conferida interpretação analógica ou extensiva dos itens e categorias nela previstos. Estamos falando de uma das mais relevantes conquistas do constitucionalismo moderno. Flexibilizá-la corresponderia a esvaziar um direito do qual sequer o Império nos privou.
*Saul Tourinho Leal, é doutor em Direito Constitucional e Advogado