Por: Laura Cardoso Kalil Vilela Leite, Maria Eduarda Moysés de Queiroz Alves e Beatriz Miyazaki Kakazu*
O direito de conhecer sua origem genética é essencial ao homem, associando-se diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que esta “se afirma e se manifesta sob o influxo dos direitos da personalidade, porque é por meio desse respeito, consagração e manutenção que ela se apresenta” (JABUR, Gilberto Haddad. Limitações ao direito à própria imagem no novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. p. 13.).
A ancestralidade é parte indissociável dos direitos da personalidade e aproveita o caráter de inalienabilidade, vitaliciedade, irrenunciabilidade, imprescritibilidade e intransmissibilidade inerentes a esse rol de direitos.
Se há muito o direito à busca da ancestralidade era indevidamente limitado pela doutrina e jurisprudência ao reconhecimento da paternidade ou maternidade, hoje vislumbram-se novos e amplos horizontes sobre as nuances deste direito, ao exemplo da possibilidade de netos pleitearem declaração de relação avoenga.
Em célebre precedente1 sobre o tema, a segunda seção do Superior Tribunal de Justiça concluiu que “os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e personalíssimo de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô, ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à origem genética estão intimamente ligados ao conceito de dignidade da pessoa humana”. Ademais, restou consolidado o acertado entendimento de que “o direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88“.
Outra fundamentação possível no ordenamento brasileiro para o reconhecimento da relação avoenga seria o direito à vida privada, no sentido de que cada pessoa tem a faculdade de procurar informações que a compõe como ser humano, sem que as autoridades possam impedi-la. Além disso, o direito à integridade pessoal também serve como alicerce para fundamentar a possibilidade do reconhecimento da relação avoenga, vez que é possível, com o conhecimento de antecedentes na família, prevenir certas doenças hereditárias.
Dentro dessa lógica, emerge dúvida razoável a respeito da extensão e dos limites do direito ao reconhecimento de relação avoenga. Ocorrendo o falecimento do neto que propôs ainda em vida ação de reconhecimento de relação com suposto avô, os herdeiros poderiam ingressar no feito através de sucessão processual? Em caso positivo, essa extensão seria atribuída apenas aos descendentes ou a qualquer herdeiro, incluindo até mesmo cônjuges, primos, e eventuais herdeiros testamentários?
A resposta demanda invariavelmente a análise da natureza jurídica do direito ao reconhecimento de relação avoenga. Ainda que não se negue os potenciais reflexos patrimoniais a ele inerentes, trata-se, em verdade, de típico direito personalíssimo, a atrair para si a respectiva regulamentação legal.
A questão foi inclusive explorada na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, na qual restou consolidado o enunciado 521: “Qualquer descendente possui legitimidade, por direito próprio, para o reconhecimento do vínculo de parentesco em face dos avós ou qualquer ascendente de grau superior, ainda que o seu pai não tenha iniciado a ação de prova da filiação em vida”.
Com efeito, ressalta-se que não é possível a sucessão processual causa mortis em casos de direito personalíssimo2, pois este, nos termos do artigo 11 do Código Civil, é intransmissível, salvo expressas e restritas exceções legais.
Optou o legislador por excepcionalmente permitir a sucessão processual dos herdeiros do filho que moveu a ação de paternidade em vida, mas que veio a falecer antes da extinção do processo (CC, art. 1.606, § único). É, portanto, uma norma excepcional, atraindo aplicação restritiva pelo operador do Direito.
Significa dizer que a previsão do parágrafo único do artigo 1.606 do diploma civil faz-se aplicável à subsunção restrita àquela excepcional hipótese concreta por ele descrita. Inaplicável, portanto, ampliar a sucessão processual de direito da personalidade em ação de investigação avoenga cujo neto-autor veio a falecer, posto que a regra da intransmissibilidade permanece intacta em tal circunstância.
Ora, não haveria razão lógica para que um terceiro que não tenha grau de parentesco em linha reta sucedesse processualmente o neto falecido.
Nesse sentido, a admissibilidade da ação de investigação avoenga não constitui uma superação da regra da intransmissibilidade dos direitos da personalidade. Trata-se, em realidade, do próprio reconhecimento de que os descendentes exerciam a tutela de um direito próprio da personalidade.
Sendo a sucessão processual inviável quando o objeto da discussão é um direito intransmissível, conclui-se que a legitimidade para o reconhecimento judicial de relação avoenga se limita aos netos e aos sucessores em linha reta, verdadeiros detentores do direito próprio e personalíssimo para identificação de sua ancestralidade e de suas origens genéticas.
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1 STJ, 2ª Seção, REsp 807.849/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 24/3/2010.
2 “1. Sucessão em caso de morte. A sucessão pode ainda ocorrer com a morte de qualquer das partes, salvo se se tratar de ação que gire em torno de direito intransmissível, como, por exemplo, direitos personalíssimos, em que, falecendo a parte, deve ser extinto o processo sem resolução de mérito (art. 485, IX).” (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Primeiros comentários ao novo Código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020); “2. Morte da Parte e Direitos Personalíssimos. Se a causa tratar de direitos personalíssimos da parte falecida, então a morte da parte não dá lugar à sucessão processual, tendo o processo de ser extinto sem resolução de mérito (art. 485, IX, CPC). Pressuposto para incidência do art. 110, CPC, é que não estejam em causa direitos personalíssimos.” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016).
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JABUR, Gilberto Haddad. Limitações ao direito à própria imagem no novo Código Civil. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo. Questões controvertidas no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de processo civil comentado. 4. ed. rev. atual. e ampl. em e-book. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Direito de Família. V. V. 25ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
ROCHA, Maria Vital da; MELO, Álisson José Maia. Direito ao conhecimento das origens genéticas no Brasil. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional. V. 8/2015. p. 487-510. agosto-2015.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.) et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
*São, respectivamente, advogada e estagiárias de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.