Magistrado tem de resistir ao canto de sereia

Nos dias correntes, mais do que em qualquer outro momento da Constituição de 1988, é preciso atentar para a dualidade “todo/todos”. Isto no sentido da unidade do todo social versus a pluralidade das pessoas que o compõem. Uma pluralidade que engloba as pessoas físicas e os próprios agentes públicos. Mas uma pluralidade que, na quadra histórica atual, dá nítidas provas de somente ver o destacado umbigo de suas facções, passando a enveredar por um caminho assim corporativo que tem desembocado no risco maior da fragmentação do todo.

Esquece-se de que apenas o todo (todo social) é detentor dos mecanismos de disciplina dos comportamentos privados e também públicos para defesa de si mesmo —para a conquista do seu tríplice e superior estado de sobrevivência, equilíbrio e evolução.

Todos devem se submeter ao todo, portanto, porque o todo é mais importante que suas partes em eventual posição de radical insulamento. Mais importante até do que o simples e mecânico somatório de suas partes, à exceção daqueles bens da vida que a própria Constituição reconhece como um direito de personalidade que apenas admite escolhas de mútua exclusão: ou se absolutiza o direito, ou se absolutiza o poder. Como sucede com a liberdade de expressão individual e de imprensa, por ilustração.

Pois bem, quanto aos citados mecanismos de disciplina social, eles se imbricam no sistema jurídico (o chamado direito positivo) e no sistema de justiça. Dando-se que a presente quadra histórica é de desafio maior do todo social para resistir aos desvios de conduta de qualquer facção ou particularizado grupo de interesses, inclusive daqueles que somente existem para impedir tais desvios: o Poder Judiciário como instância de cúpula do sistema de justiça. Para o qual afunila o sistema jurídico.

Donde a esse Poder estatal ser reconhecida a força de impedir até mesmo o desgoverno dos outros dois Poderes públicos: o Legislativo e o Executivo.

Equivale a dizer: se a Constituição governa quem governa, só pode autenticamente fazê-lo pelo Poder que não governa o povo, mas detém a força jurídica de impedir que os Poderes propriamente governamentais entrem em desgoverno. A traduzir que o Poder impeditivo do desgoverno não pode jamais entrar em desgoverno. Não pode jamais ser parte do problema de maior gravidade, que é fazer o jogo da fragmentação do todo. Desatento à lógica elementar de que sua estruturação em graus de imperativa jurisdição é para impedir essa tipologia endógena de dispersão. Trata-se da mais temerária de todas as fragmentações, porque a mais comprometedora da unidade do todo social.

Vou à síntese. Um magistrado, seja qual for o grau de jurisdição em que oficie, tem que resistir ao seguinte canto de sereia: deixar de lado a pura objetividade do direito para ficar do lado de sua voluntarista subjetividade —individual ou grupalmente considerada.

Opção esta que implica deslize técnico e ao mesmo tempo funcional, com a circunstância agravante de que, não tendo ele como assumir a autoria de uma tão deliberada quanto antijurídica troca de parâmetro, passa a fingir que não trocou. Passa a fazer do seu dever de fundamentação técnico-decisória de causas e teses um exercício de alquimia interpretativa que põe o direito positivo em ânsias de vômito e a própria inteireza ética do operador jurídico em estado de inevitável suspeita.

Enfim, a hora é de comprovação daquilo que mais distingue o ser humano em todo o reino animal: a capacidade de acumular conhecimentos, criticamente. A partir daí, tentar repaginar-se ou buscar uma versão melhorada de tudo e de si mesmo. Donde Albert Einstein cunhar duas frases tão sábias quanto reciprocamente complementares: toda dificuldade é janela de oportunidades superadoras, assim como loucura é querer resultados diferentes, fazendo-se sempre as mesmas coisas.

Por: Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e doutor em direito constitucional (PUC-SP)

FONTE: FOLHA DE SÃO PAULO

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