Por Saul Tourinho Leal*
O bioma da caatinga, no nordeste brasileiro, requereu coragem e determinação ao mandacaru. Graças a sua resiliência, essa planta vive muitos anos. Ao contrário de ter folhas e flores, carrega consigo espinhos. Não por maldade, por legítima defesa.
Mas o mandacaru sabe que também há tempos de prosperidade nos quais a escassez é derrotada. Quando a chuva se aproxima, e a alma do sertanejo se levanta, a planta entrega ao mundo o seu milagre particular: a flor do mandacaru. É um sinal de prosperidade. Na vida e no direito, é importante saber interpretar os sinais.
A chuva é a prosperidade. A falta dela, a escassez. Na sociedade em rede, a inovação é a prosperidade em nossas vidas e a falta dela gera escassez tecnológica. Todos passam a ser condenados a terem uma vida mais penosa e com menos conforto. É preciso saber se o Brasil tem, em sua Constituição, algum sinal de inclusão e acolhimento da inovação. Um sinal que traga esperança. Uma “flor de inovação”.
Nações respeitáveis conferiram proteção constitucional à inovação. A Suíça, por exemplo, dispõe, no art 64, 1, que “a Confederação promoverá a pesquisa científica e a inovação”. Já o art. 127, 1, da Constituição da Coréia do Sul reza que “o Estado deve esforçar-se para desenvolver a economia nacional através do desenvolvimento de ciência e tecnologia, informação e recursos humanos e incentivo à inovação”.
Quanto a nós, é duro saber que Ucrânia, Mongólia, África do Sul, México, Chile, Índia, Panamá, Colômbia, Uruguai…, foram considerados ambientes mais inventivos e amigáveis à inovação. O Brasil ocupa a 69ª posição no Índice de Inovação Global[1]. Tem reinado a escassez, o que impõe uma resiliência infinita a todos nós.
Mesmo assim, pela ótica da Constituição, a hora é agora. “Nada é mais poderoso do que a ideia cujo tempo chegou”. A citação, que é de Victor Hugo, abre espaço para a compreensão da importância da inovação[2]. O inventor é, desde a aurora dos tempos, um agente de transformação. Devemos entendê-lo com um olhar no futuro, não no passado.
É preciso inovar. O constitucionalismo é um agente fundamental a esse propósito. Para Wolfgang Hoffmann-Riem, juiz da Corte Constitucional alemã, “o Direito Constitucional também deve estar aberto à inovação”[3]. Uma hermenêutica inclusiva reclama uma interpretação estatal suave dessas inovações, para que os experts possam medir potenciais externalidades negativas e estudar as formas de contê-las, sem que a liberdade de inovar seja comprometida. O inciso IX do art. 5º da nossa Constituição diz: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. É a liberdade de inovar.
A Constituição de 1988 deu à ciência e à tecnologia o destaque de um capítulo próprio. A ele, diversos dispositivos foram inseridos pela Emenda nº 85, de 2015, resultando no Capítulo IV, da “Ciência, Tecnologia e Inovação”.
Todos os entes federados devem proporcionar os meios de acesso à ciência, tecnologia, pesquisa e inovação (art. 23, V). O caput do art. 218 diz: “O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação”. O § 1º reclama “tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”. O parágrafo único do art. 219 diz que o Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e pólos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia. Normativamente, o ambiente é de abundância, mas é preciso dar vida a essas regras, torna-las vivas e ativas entre nós.
Até porque inovação não é uma expressão vazia[4]. A Lei Complementar nº 123/2006, no seu art. 64, I, traz o seguinte conceito: “a concepção de um novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando em maior competitividade no mercado”. Há outras leis apontando um sentido semelhante[5].
Esse ambiente chegou ao Supremo Tribunal Federal. Segundo o Min. Gilmar Mendes, “o Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas”, pois “o apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis” (ADI-MC 1945, Pleno, 26/5/2011).
É o mesmo sentimento do Min. Ricardo Lewandowski, que decidiu: “Na sociedade moderna, a internet é, sem dúvida, o mais popular e abrangente dos meios de comunicação, objeto de diversos estudos acadêmicos pela importância que tem como instrumento democrático de acesso à informação e difusão de dados de toda a natureza” (ADPF 403, monocrática, DJe 1º/8/2016).
O ambiente é fruto da Quarta Revolução Industrial. Para Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, essa nova face da corrida industrial não envolve apenas máquinas inteligentes e conectadas; seu escopo é amplo. “Estamos observando simultaneamente ondas de avanços em diversas áreas, que vão do sequenciamento genético à nanotecnologia. É a fusão dessas tecnologias e a inovação com as dimensões física, digital e biológica que tornam o fenômeno atual diferente de todos os anteriores. Tecnologias emergentes e inovação em ampla escala têm se difundido mais rapidamente e de maneira mais ampla do que em movimentos do passado. Além disso, os ganhos de escala com a inovação são assombrosos e algumas tecnologias disruptivas parecem demandar muito pouco capital para prosperar”[6], diz.
A Quarta Revolução Industrial culmina na sociedade em rede, sobre a qual Manuel Castells discorre com profundidade. Ele garante que a internet está transformando a prática das empresas em sua relação com fornecedores e compradores, em sua administração, em seu processo de produção e em sua cooperação com outras firmas, em seu financiamento e na avaliação de ações em mercados financeiros[7].
“Do redemoinho das empresas ponto.com resultou uma nova paisagem econômica, com as empresas eletrônicas em seu núcleo. Por empresas eletrônicas entendo qualquer atividade de negócio cujas operações-chave de administração, financiamento, inovação, produção, distribuição, vendas, relações com empregados e relações com clientes tenham lugar predominantemente pela/na Internet ou outras redes de computadores, seja qual for o tipo de conexão entre as dimensões virtuais e físicas da firma”, anota Castells, assegurando que “essa transformação sociotécnica permeia o sistema econômico em sua totalidade, e afeta todos os processos de criação, de troca e de distribuição de valor”. E arremata: “capital e trabalho, os componentes-chave de todos os processos de negócios, são modificados em suas características, bem como no modo como operam[8]”.
Esse solo fez nascer as startups baseadas em plataformas digitais destinadas a promover inovações com um caráter “disruptivo”. “Inovação disruptiva” é aquela que estabelece um novo modelo de negócio (business model) capaz de redesenhar, refundar ou substituir toda uma indústria. Por não se encaixar nas regulações vigentes, termina requerendo do hermeneuta judicial ou administrativo um tratamento jurídico inclusivo e igualmente inovador. Isso, para não se estrangular a inovação.
Startups também tem lastro constitucional. O § 2º do art. 218 da Constituição, dispõe: “a pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional”. O § 4º diz: “a lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos”. É a base normativa entregue ao progresso das futuras gerações.
Como se vê, a Constituição de 1988 está preparada para os grandes desafios que os tempos presente e futuro colocam diante de nós. Essa robusta base constitucional é, metaforicamente, a flor do mandacaru. É o sinal de que, pelo menos do ponto de vista normativo, tudo está pronto para uma chuva de inovação. Que essa chuva venha e traga fartura a todos nós.
*Saul Tourinho Leal: Integrante de Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia, é Doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP
[1] Em: file:///C:/Users/usuario/Downloads/gii-full-report-2017.pdf. Acesso abr/2018.
[2] “As startups têm em comum quatro aspectos: baixíssimo investimento, modelo de negócio repetível e escalável, atuação no ramo de inovação tecnológica e início de suas atividades em cenário de incerteza” Diogo Luiz Araújo de Benevides Covêllo. As formas de promoção e incentivo do Estado brasileiro na inovação, p. 467. Já João Pontual de Arruda Falcão anota: “Startups são empresas que criam modelos de negócio altamente escaláveis, a baixos custos e a partir de ideias e tecnologias inovadoras”. Startup law Brasil: o direito brasileiro rege mas desconhece as startups. 160 f. Dissertação (mestrado) – Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2017, p. 3.
[3] Direito, tecnologia e inovação. Coord. Gilmar Mendes, Ingo Wolfgang e Alexandre Zavaglia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 29.
[4] Em 1942, Joseph Schumpeter publicou Capitalismo, socialismo e democracia, sobre o desenvolvimento do sistema capitalista e seu futuro, onde ele apresenta o conceito de “destruição criativa”. O autor identificou, como elemento do capitalismo, uma estrutura econômica revolucionária que destrói, a partir dela mesma, antigas estruturas e cria novas lógicas econômicas. A destruição criativa seria a primeira de uma série de fatores que contribuiriam para a transformação definitiva de um modo de produção.
[5] A Lei nº 11.196/2005, que dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação tecnológica, traz no § 1º do art. 17 o conceito de inovação: “Considera-se inovação tecnológica a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado”. A Lei nº 10.973/2004 já dispunha sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo. Segundo o inciso IV do art. 2º, considera-se inovação: “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho” (Redação pela Lei nº 13.243/2016).
[6] Schwab, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. SP: Edipro, 2016, p. 65.
[7] Castells, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão Paulo Vaz. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 56.
[8] Castells, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão Paulo Vaz. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 66.