Hoje é dia de #TBT no Ayres Britto e destacamos uma das principais decisões do primeiro semestre em matéria tributária.
Em recurso perante o Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Gurgel de Faria proferiu decisão para anular acórdão do tribunal local, segundo a compreensão de que não teria havido adequada apreciação da aplicabilidade de Convênio do CONFAZ no julgamento.
A decisão é particularmente importante para lançar luz sobre o tema dos incentivos fiscais convalidados por ato superveniente do Conselho Nacional de Política Fazendária e a possibilidade de revisão pelo Superior Tribunal de Justiça.
“Diante do exposto, reconsidero a decisão de e-STJ fls.1.341/1.343, tornando-a sem efeito, e, com base nos arts. 34, XXV, e 253, parágrafo único, II, “c”, do RISTJ, CONHEÇO do agravo para DAR PROVIMENTO ao recurso especial, a fim de anular o acórdão recorrido, por violação do art. 535 do CPC/1973, determinando o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que reaprecie os embargos de declaração, sanando o vício de integração ora identificado, com entender de direito”, decidiu o relator, ministro Gurgel de Faria.
Confira abaixo a decisão completa do STJ.
DECISÃO
Trata-se de agravo interno manejado pela CERPA CERVEJARIA PARAENSE S.A. contra decisão por mim proferida, constante às e-STJ fls. 1.341/1.343, em que, entendendo inexistente a alegada ofensa ao art. 535 do CPC/1973 e incidente o óbice da Súmula 280 do STF, conheci parcialmente do recurso especial e, nessa extensão, neguei-lhe provimento.
Nas suas razões (e-STJ fls. 1.353/1.360), a agravante sustenta, em resumo, que o acórdão recorrido padece de omissão, pois não se manifestou sobre os artigos de lei federal e o convênio do Confaz suscitados nos embargos de declaração, e que a pretensão deduzida no recurso especial é de “questionar a não aplicação dos dispositivos constantes na Lei Federal”.
O ESTADO DO PARÁ apresentou impugnação (e-STJ fls. 1.372/1.376).
Passo a decidir.
Considerando os argumentos suscitados, notadamente os referentes à nulidade do acórdão recorrido por infringência do art. 535 do CPC/1973, exerço o juízo de retratação para reexaminar o agravo da empresa, o qual pretende a admissão de recurso especial que desafia acórdão assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL – APELAÇÃO EM AÇÃO POPULAR –
PRELIMINAR DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE MODIFICAÇÃO
DO PEDIDO SUSCITADA EM CONTRARRAZÕES, REJEITADA –
MÉRITO DO RECURSO DE APELAÇÃO: CONCESSÃO DE BENEFÍCIOS
FISCAIS – INOBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS – PREJUÍZO
AO ERÁRIO – INCONSTITUCIONALIDADE DOS DECRETOS
ESTADUAIS – EFEITOS EX TUNC – NULIDADE DO ATO IMPUGNADO
– PREJUDICIALIDADE QUANTO AS DEMAIS MATÉRIAS ALEGADAS
– RECURSO CONHECIDO E PROVIDO – REFORMA DA SENTENÇA –
DECISÃO UNÂNIME.
1. Apelação Cível em Ação Popular.
1.1. Preliminar de Impossibilidade de modificação do pedido suscitada em
contrarrazões, Rejeitada. Incidente de inconstitucionalidade arguido pela parte
autora no decorrer do processamento do feito. Matéria apreciada na sentença
guerreada.
2. Mérito do Recurso de Apelação.
2.1. Benefícios fiscais concedidos a empresa apelada em desacordo com os
ditames legais. Declaração de inconstitucionalidade do inciso I, art. 5º da Lei
Estadual 6.489/2002. Aplicação do efeito ex tunc aos créditos relativos a
ICMS que não tenham sido objeto de convênio entre os Estados e Distrito
Federal.
2.1.1. Nulidade do ato impugnado. Demais alegações constantes do presente
recurso de apelação restam prejudicadas.
3. Recurso Conhecido Provido. Reforma da Sentença de Piso. Decisão unânime.
Os embargos de declaração foram rejeitados.
No seu apelo raro, a empresa, apontando divergência jurisprudencial e violação dos arts. 264 e 535 do CPC/1973, do art. 2º da Lei n.4.717/1965 e do art. 1º da LC n. 24/1975, sustenta, em síntese, que: (a) o acórdão é nulo, por omissão, pois não se teria manifestado sobre fato novo suscitado nas contrarrazões de apelação e reiterado em sede de embargos de declaração; (b) houve indevida inovação da causa de pedir na apelação do Ministério Público estadual, pois se fundou em ilegitimidade de decreto não ventilado na exordial; (c) não estão caracterizados a ilegalidade do objeto e o desvio de finalidade do ato impugnado a justificar o cabimento da ação popular; (d) o benefício fiscal considerado inconstitucional no julgamento desta ação popular veio a ser convalidado por meio do Convênio Confaz ICMS n. 02/2010.
Depois de apresentadas as contrarrazões pelo Ministério Público estadual, o Tribunal de origem obstou o recurso especial por compreender não
caracterizada a ofensa ao art. 535 do CPC e aplicável o óbice da Súmula 280 do STF, não concordando a agravante com essa fundamentação.
Oferecidas contraminutas pelo Parquet e pelo Estado do Pará.
Pois bem.
Inicialmente, destaco que o Plenário do STJ decidiu que “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até
17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo n. 2, sessão de 09/03/2016).
Feita essa consideração, cumpre salientar que o recurso especial em comento origina-se de ação popular ajuizada em desfavor do Estado do Pará e da CERPA S.A. com o objeto de anular decreto estadual que concedeu à empresa benefício fiscal em forma de crédito presumido que representaria a dispensa de pagamento de 95% do crédito de ICMS devido e de ressarcir o erário desse prejuízo.
O magistrado de primeiro grau julgou improcedente o pedido. Irresignado, o Ministério Público estadual interpôs recurso de apelação, o qual foi provido pelo TJ/PA, com a seguinte motivação:
Cinge-se a controvérsia recursal a inobservância dos requisitos previstos no
art. 13 das leis n. 5.493/1996 e 6.489/2002, para concessão do benefício fiscal,
bem como a inconstitucionalidade dos Decretos Estaduais n. 4.339/2000 e n.
4.353/2000, fundamentados nas Leis Estaduais n. 5.493/1996 e n. 6.489/2002.
Consta das razões recursais deduzidas pelo ora apelante que, o beneficio fiscal
concedido a apelada CERPA -Cervejaria Paraense S/A, estaria em flagrante
desacordo com o disposto no art. 13 das leis n. 5.493/1996 e 6.489/2002 que o
fundamentou, face a não apresentação de negativa de débito, e a existência de
débito daquela junto ao fisco, além disso, consta ainda que os Decretos
Estaduais n° 4.339/2000 e n° 4.353/2000, editados sob as Leis Estaduais n°
5.493/1996 e n° 6.489/2002, seriam inconstitucionais, face a inobservância do
preceito insculpido no art. ec4, 155, §2°, inciso XII, alínea “”, de nossa Carta
Magna.
Precipuamente insta destacar que a ação popular se constitui em um remédio
constitucional, que possibilita ao cidadão que esteja em pleno gozo de seus
direitos políticos, o direito de tutelar em nome próprio interesse da
coletividade de forma a prevenir ou reformar atos lesivos praticados por
agentes públicos ou a eles equiparados por lei ou delegação, na proteção do
patrimônio público ou entidade custeada pelo Estado, ou ainda a probidade
administrativa.
Sendo cediço e pacífico na doutrina pátria serem requisitos da ação popular: a
condição de cidadania do autor, a ilegalidade ou ilegitimidade do ato a
invalidar e a lesividade ao patrimônio público.
Noutra ponta, o §4°, do art. 6°, da Lei n.° 4.717/1965, disciplinou a atuação do
Ministério Público na ação popular, tornando obrigatória a participação do
Parquet, na referida ação, muito embora ele não possua legitimidade para a sua
propositura, bem como atribuiu suas funções e prerrogativas entre elas a
faculdade do Ministério Público recorrer de decisões contrárias ao autor,
consoante disposição contida no §2°, do art. 19, da Lei n.° 4.717/1965, no
cumprimento de sua função constitucional de fiscal da lei, apontando qualquer
irregularidade ou ilegalidade no decurso do processo.
Feita essas considerações passamos a análise do mérito recursal propriamente
dito.
Analisando detidamente os autos, atesta-se que através dos Decretos n°
4.339/2000 e n° 4.353/2000, a administração estadual instituiu beneficio fiscal
à CERPA -Cervejaria Paraense S/A, extinguindo 95% (noventa e cinco por
cento) do crédito tributário existente, por meio de crédito presumido neste
percentual, com fulcro na Lei n° 5.493/96, sucedida pela lei n° 6.489/2002.
Com efeito, a Comissão da Política de Incentivo às Atividades Produtivas no
Estado aprovou a concessão do beneficio através de Resolução que fora
homologada pelo Decreto n° 4.339/2000 que, portanto, não concedeu de modo
direto o beneficio, mas aprovou o parecer que propiciou a concessão
consubstanciada pelo Decreto 4.353/2000, do crédito presumido de 95%
(noventa e cinco por cento) sobre o ICMS -Imposto Sobre Circulação de
Mercadorias e Prestação de Serviços, devido nas operações de comercialização
dos produtos fabricados pela empresa apelada.
Faz-se mister destacar, contudo, que a citada legislação estadual que alicerçou
os decretos contestados no presente feito foi objeto de Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade -ADI n° 3.246 -apresentada junto ao Supremo Tribunal
Federal pelo Procuradoria Geral da República.
A referida Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, objetivava tomar sem
efeito todos os atos da lei, por eficácia erga omnes.
Tendo o Pleno do Supremo Tribunal Federal, assim se manifestado, verbis:
[…]
Consoante o destacado julgado, verifica-se que o Pleno do Supremo Tribunal
Federal declarou a inconstitucionalidade do inciso I, do art. 5° da Lei n°
6.489/2002, que assim disciplinava:
Art. 5° São instrumentos de aplicação desta Lei:
I -incentivos fiscais, a serem concedidos aos empreendimentos previstos no
art. 3°, nas seguintes modalidades:
a) isenção;
b) redução da base de cálculo;
c) diferimento;
d) crédito presumido;
e) suspensão;
Na análise da citada ADI entendeu o Supremo Tribunal Federal ser
indispensável à decisão conjunta dos estados para a concessão dos incentivos
fiscais, a fim de se a evitar a competição predatória entre os entes da
federação, ou seja, a ocorrência de guerra fiscal, devendo ser dada à parte
questionada da lei estadual a ilação em conformidade ao disposto art. 155,
parágrafo 2°, inciso XII, alínea “” da Constituição Federal, qual seja, no
sentido de que sejam excluídos os créditos fiscais relativos ao ICMS
decorrentes de incentivo fiscal não previsto em convênio entre os estados.
Vejamos o mencionado dispositivo constitucional, in verbis:
[…]
Dessa forma, julgou o Supremo Tribunal Federal, procedente a ADI 3.249/PA,
declarando inconstitucional o inciso I, do art. 5º da Lei Estadual nº
6.489/2002, sob a aplicação de ilação em observância ao art. 155, §2º, inciso
XII, alínea “” de nossa Carta Magna, excluindo-se por incidência do efeito ex
tunc os créditos fiscais relativos ao ICMS que não tenha sido objeto de
convênio entre os Estados da Federação e Distrito Federal.
A Lei Estadual n° 6.489/2002, que teve o referido dispositivo declarado
inconstitucional, e;03 substituiu as disposições previstas na Lei Estadual n°
5.943/1996, não tendo até a data de sua entrada em vigor, sido realizado
convênio entre os Estados, com o escopo de regular beneficio instituído pela
citada lei e, por conseguinte, inexistia convênio igualmente à époc do ato que
contemplou a CERPA -Cervejaria Paraense S/A, com redução de 95%
(noventa e cinco por cento) do valor devido pelo ICMS.
À vista disso, face a declaração de inconstitucionalidade do mencionado
dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal, com efeito ex tunc, a nulidade do
ato impugnado por meio da originária ação popular é medida que se impõe,
dispensando-se a apreciação dos demais aspectos das ilegalidades suscitadas,
dada a prejudicialidade decorrente do julgamento da constitucionalidade da
legislação que assentava os Decretos estaduais contestados.
Destarte, revela-se assente a existência dos requisitos legais para a procedência
da ação popular elencados alhures, quais sejam, as condições autorais, bem
como a ilegalidade do ato a invalidar, restando demonstrada por fim a
lesividade do ato, ante o flagrante prejuízo ao erário que deixou de recolher,
em larga proporção, no importe de 95% (noventa e cinco por cento), dos
valores do imposto devido.
Do que se observa, o Tribunal de origem, ao dar provimento à apelação, julgou procedente a ação popular, ao entendimento de que o decreto impugnado fundou-se em lei estadual eivada de vício de inconstitucionalidade, pois concedeu benefício fiscal não autorizado previamente no âmbito do Confaz.
Ocorre que a empresa ora agravante opôs embargos de declaração com o propósito de obter a manifestação da Corte estadual acerca da aplicação de direito superveniente, referente ao Convênio Confaz ICMS n. 02/2010, o qual teria convalidado o benefício fiscal tido por ilegítimo nesta demanda, o que representaria remissão dos créditos discutidos. É o que se retira do seguinte trecho dos aclaratórios:
Mostra-se carecedor de modificação, neste diapasão, o dispositivo do acórdão
embargado que determinou a “devida devolução dos valores correspondentes
aos 95% (noventa e cinco por cento), do ICMS não recolhidos aos cofres do
Estado por todo o período em que, acobertada pela concessão ilegal e lesiva do
benefício, deixou de fazê-lo a empresa apelada”.
Conforme informativo divulgado pela própria Secretaria de Fazenda do Estado
do Pará (cópia à folha 833), o CONFAZ aprovou “a convalidação dos
incentivos fiscais concedidos pelo Estado do Pará de 2002 a 2006”.
Não faz sentido, não é justo, e tampouco guarda conformidade com o princípio
constitucional da ISONOMIA, impor tal ônus à embargante, quando todas as
empresas destinatárias dos incentivos fiscais estaduais julgados
inconstitucionais pelo STF, na ADI mencionada no acórdão embargado, foram
beneficiadas com a remissão destes mesmos débitos, por força da posterior
convalidação dos referidos incentivos, pelo Convênio ICMS no 02/2010 (ver
folhas 830/832 dos autos).
Entretanto, no julgamento desses aclaratórios, a Corte a quo nada acrescentou em relação a esse fato novo. É cediço que o magistrado, desde que amparado em fundamentação suficiente, não está obrigado a responder todos os argumentos suscitados pela parte.
Todavia, na espécie, a alegação da contribuinte, a despeito do juízo quanto à sua procedência, mostra-se relevante para a integral solução da controvérsia, motivo pelo qual ela (a alegação) deve ser efetivamente enfrentada pelo Tribunal local, sob pena de negativa de prestação jurisdicional.
Isso porque, realmente, o mencionado convênio do Confaz teve por escopo autorizar o Estado do Pará a não exigir os débitos fiscais decorrentes da utilização de incentivos e benefícios fiscais que especifica, por não atenderam o disposto no art.155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal.
A ocorrência de vício de integração acerca de questão relevante justifica a nulidade do julgado recorrido, por violação do art. 535 do CPC/1973. A esse
respeito: AgRg no AREsp 109.883/RS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 26/11/2012; AgRg no REsp 1.178.065/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 07/05/2013.
Reconhecido o vício de nulidade do acórdão recorrido, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso especial.
Diante do exposto, RECONSIDERO a decisão de e-STJ fls.1.341/1.343, tornando-a sem efeito, e, com base nos arts. 34, XXV, e 253, parágrafo
único, II, “c”, do RISTJ, CONHEÇO do agravo para DAR PROVIMENTO ao recurso especial, a fim de anular o acórdão recorrido, por violação do art. 535 do CPC/1973, determinando o retorno dos autos ao Tribunal de origem para que reaprecie os embargos de declaração, sanando o vício de integração ora identificado, com entender de direito.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília, 08 de abril de 2021.
Ministro GURGEL DE FARIA
Relator