Carlos Ayres Britto
“Vá para dentro, vá para dentro” é a principal exortação que se lê nos Upanishads, que são as mais antigas escrituras sagradas dos hindus. Exortação, a seu turno, que penso traduzida melhor como um “vá para o centro, vá para o centro”. Vá para o centro de você mesmo, e não para os lados periféricos da sua individualidade. Vá para o centro porque somente assim o indivíduo pode caminhar de fim para fim e de topo para topo de sua própria existência. Que já corresponde à trajetória de quem ascende ao patamar da sua consciência. Logo, o ansiado centro do indivíduo não é senão o ver e fazer as coisas a partir da própria consciência. Ver e praticar a vida pelo mais alto prisma da interioridade humana, cujo nome é consciência. Com o que passam a coincidir o mais focado ponto de centralidade individual e o mais elevado espaço da caminhada de cada ser humano na direção de si mesmo: sua consciência.
Claro que esse ir para o centro é também o mais firme ponto de equilíbrio do indivíduo. A dança da sua própria unidade. O hábitat da sua harmonia interior. “Deus está na harmonia das coisas”, disse Espinoza, no que foi acompanhado por Einstein. E é de supor que cientistas, artistas e místicos também estejam nesse necessário e sólido estado de harmonia interior, quando da irrupção dos seus insights, inspirações e revelações, respectivamente (penso que o insight está para o cientista assim como a inspiração está para o artista e a revelação está para o místico). Harmonia individual que certamente contribui para a coesão social e a sustentabilidade ecológica do planeta, pois não é crível que ela, harmonia interior, não tenda à irradiação para tudo que lhe sirva de entorno.
Explico.
Explico tal propensão à elasticidade da harmonia interior, mas a partir da seguinte pergunta: quem tem mais chances de morar nessa radiosa casa que é ela mesma, harmonia interior? Harmonia interior ou paz consigo mesmo? Paz que também passa a prevalecer entre o indivíduo e seu travesseiro, para o mais reparador dos sonos? Resposta: quem mantém a sua autoestima no ponto. E mantém a sua autoestima no ponto por se dar ao respeito. Por se dar ao respeito em duas coisas principais: 1) Só desfrutar vantagens tão legais quanto intrinsecamente justas; e 2) fazer da prática da honestidade o primeiro e mais fácil dever para consigo próprio, sua família, seus amigos, sua profissão, seu país, seu planeta, o universo, a vida. Ou ainda um dar-se ao respeito perante sua confissão religiosa, para os que a têm. Perante seu Deus, por consequência.
Esses dois modos especiais de se dar ao respeito ou de ter orgulho de si mesmo são meritórios por definição. Intrinsecamente meritórios, portanto. Mas ainda se revelam como as opções mais inteligentes de vida. Duas convergentes opções que levam o indivíduo a não temer, por exemplo, as instituições mais temidas por quem segue o caminho oposto: a polícia, o Ministério Público, o Poder Judiciário, os tribunais de contas, a imprensa. O ético a dar as mãos à inteligência para encher de justo orgulho os que vivem no centro de si mesmos. Os que veem e decidem tudo pelo prisma de sua consciência (de cujo píncaro o visual das coisas se alarga, aprofunda e aclara). Os que experimentam a bem-aventurança de uma harmonia interior que, de tão exuberante, plenificante mesmo, tem de transbordar para os lados da coesão social e do meio ambiente em bases sustentáveis. Como anteriormente dito.
Dou conta de um fato. Um fato a que bem assentaria o nome de A parábola das garças. É o seguinte: morava eu em Aracaju, no alto de um edifício que ficava em frente a um belo e encorpado manguezal. Ao pôr do sol, bandos de garças retornavam para o seu merecido sono ao pé das retorcidas e enlameadas árvores do mangue. Ao rés das árvores e do chão sempre lodoso daquele ambiente que lhes servia de ninhal. Não pousavam elas, as garças, precipitada ou atabalhoadamente. Não! O seu pouso era estudado. Prudente. Cuidadoso. Delicado, em suma, à moda de reconhecimento do terreno ou assim como quem ensaia passos de dança antes do definitivo pouso. Era uma chegada coreográfica. No dia seguinte, manhãzinha, elas empreendiam voo em direção a outras paragens, uma após outra. Mas essa decolagem também era cuidadosa e eu as via passando bem rente à varanda do meu apartamento. Prestava muita atenção. Nenhuma delas exibia a menor mancha de lama no alvor das respectivas penas. Eu deduzia, então, que o pouso e a decolagem tão cuidadosos tinham uma razão de ser. Eles eram mais que um pouso e decolagem assépticos. Eram éticos. Eram a diária lição de que é possível conviver em determinados ambientes que não são flor que se cheire – permito-me a metáfora –, mas sem se deixar contaminar por nenhum modo. As garças de Aracaju passavam pelo meu prédio com a serenidade e o equilíbrio típicos dos que vivem no centro de si mesmos. Com sua autoestima no ponto. Orgulhosas do seu próprio exemplo. Quem sabe não sejam elas as inspiradoras do ditado de que “mais vale um grama de exemplos do que uma tonelada de palavras”? Quem sabe não queiram lembrar aos partidos e políticos brasileiros que a palavra “candidato” vem de “cândido”, no sentido moral? Cândido ou puro ou limpo, eticamente, do mesmo jeito que o substantivo “candidatura” vem de “candura”? Candura ou pureza ou limpeza em idêntico sentido moral? Benditas garças! Que prossigam a se olhar no espelho dos Rios Sergipe e Poxim sem jamais corar de vergonha.
Recorro a um político para terminar estes escritos. Thomas Jefferson. Ele foi por oito anos presidente dos Estados Unidos da América (de 1801 a 1809) e se despediu do poder com a célebre enunciação de que “a arte de governar consiste exclusivamente no dever de ser honesto”.
Era um homem centrado. Tudo que ver com o princípio da moralidade que se lê na cabeça do artigo 37 da Constituição brasileira. Basta cumprir.
Fonte: O Estado de S. Paulo